O assunto que hoje vos trago recordou-me, por alguma estranheza que vos cause nos primeiros tempos, uma questão pouco consensual que dividiu a população portuguesa e que, consoante os anos vão correndo com mais ou menos celeridade, assim a questão se vai apresentando com alguma urgência ou pouca nos diversos países e no seio das suas sociedades. Não me refiro ao problema eleitoral, que esse já vai mais longe e aproxima-se de novo, este ano com grande variedade de processos e de órgãos a eleger, contando, se o bem puder adiantar ao mal, com a minha participação no sufrágio. Refiro-me, sim, ao problema do aborto, que terminou com a aceitação pela larga maioria dos portugueses, repercutindo-se essa escolha numa nova política de assistência médica e de apoio às grávidas que já compreende a liberdade da futura progenitora de tomar uma posição em assuntos que anteriormente competiam simplesmente à autoridade divina ou ao escândalo e clandestinidade. As discussões relativas à ética de tal procedimento rodeavam a questão "será aquele feto uma criança e, portanto, uma pessoa cuja morte é reprovável?", e na verdade aquilo que ali se cria é já uma criança. Surge a problemática de ser possível, ou não, ser-se antes de verdadeiramente o ser. Um feto é um feto, um bebé é um bebé, uma criança é uma criança: todas estas são fases da mesma evolução que temos de atravessar e vencer para chegarmos à idade que hoje nos pertence. Contanto que um feto dispense as características, ou algumas delas, que nos aparecem fundamentais à consolidação da espécie humana, aquilo que ali se cria e ganha forma somente resultará num humano, e nunca num orangotango.
O teatro português, enquanto afirmação de um género literário sólido e que aproveite dos aspectos dos variados movimentos literários que se vão manifestando na cultura, é justamente como um pequeno feto que muitos críticos, historiadores e intelectuais pretendem recusar, recorrendo a um aborto daquilo que já se formou em vários séculos de História. O teatro português, com efeito, faz a diferença numa arte como a literatura, que conhece em Portugal um dos países em que mais ela tem evoluído e conhecendo uma qualidade invulgar, a nível da poesia e do género narrativo. Outros países, como a Espanha, a França e a Inglaterra, viram no seu passado o grande acesso da população aos teatros e a sua preferência evidente por este género de literatura, ao contrário da evolução histórica de Portugal. Para justificar tal fenómeno não ocorre, à grande parte dos estudiosos, uma razão absoluta que tudo consiga explicar e que ouse apontar uma possível solução que vise a criação do panorama teatral português, que nunca foi concluída. No século XIX, dois grandes génios das nossas letras entenderam e escreveram que Portugal não possui, efectivamente, um teatro próprio, para o qual contribuem artistas e conteúdos crescentes: refiro-me a Almeida Garrett e a Eça de Queiroz. Este último deixou a sua grande marca no romance português, na narrativa, considerado ainda hoje o grande romancista do nosso país. O outro, por seu lado e em oposição, foi o grande dramaturgo português após Gil Vicente, e portanto conta-se entre as personalidades que menos fundamentação parecem ter para defender a inexistência de um teatro nacional. Todavia, trata-se de uma personalidade especial, simplesmente especial, a quem nem sempre podemos atribuir a posse da razão: Garrett é tido como o auge do romantismo português e ele próprio negava ser um romântico. Almeida Garrett é, a par de José Saramago, o escritor português que mais capacidades demonstrou na produção dos três géneros literários: narrativa, poesia e drama. Na verdade, Eça e Garrett falavam com sinceridade e com razão suficiente para se recordarem tais afirmações: o teatro português não existe como existe a poesia portuguesa ou o romance português. O teatro português é somente o resultado do trabalho de personalidades isoladas, ou quanto muito de gerações que deram algum protagonismo ao teatro na cena cultural do nosso país. Assim sendo, o teatro português não revê os diversos movimentos artísticos que a literatura conheceu, mas sim divide-se nas produções e nas características dos seus autores.
Antes do século XX, apenas Gil Vicente e Almeida Garrett haviam dedicado à criação dramática os seus preciosos dotes. Nesse século, várias outras personalidades pretenderam dar o seu contributo para a evolução do teatro. Entre eles, com obras de grande importância e relevo, encontramos Fernando Pessoa, Almada Negreiros, António Patrício, Júlio Dantas, Raul Brandão, José Régio, Jorge de Sena e, mais tarde, Bernardo Santareno, Luiz Francisco Rebello, José Cardoso Pires e Luis de Sttau Monteiro. A divisão de autores a que procedi não carece de legitimação: fi-lo pela convicção de que o teatro português do século XX pode, e deve, ser estudado com base em duas fases. Primeiro, encontramos os modernistas e Júlio Dantas, que ambicionaram dar um novo fulgor à dramaturgia e lhe concederam um toque muito especial das suas características. Depois, a partir dos anos 50, a produção dramática baseou-se no conceito do neo-realismo e, em alguns casos, no teatro de Brecht - uma concepção criada por Bertolt Brecht, dramaturgo alemão, que defendeu uma revisita ao passado como um apelo à consciência do presente; estudar a História de um país ou de um povo para melhor se entender o ambiente presente e os problemas que se colocam hoje. A obra Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro, é o ícone português do chamado teatro de Brecht, e o seu carácter interventivo impediu-a de ser representada antes do 25 de Abril de 1975.
Luís de Sttau Monteiro nasceu no início do mês de Abril do ano de 1926, na capital, onde também viria a morrer no Verão de 1993. Seu pai exercia diplomacia, e Salazar ofereceu-lhe o cargo de embaixador de Portugal em Londres; Sttau Monteiro tinha poucos anos de idade. Graças ao cargo do pai, viria a crescer na "livre Inglaterra", como lhe chamava o Presidente do Conselho, longe da pátria, mas perto tanto dos problemas portugueses que se conheciam no estrangeiro como das mais modernas tendências da arte, num país onde sempre confluíram muitos artistas de todas as áreas. Tomou conhecimento, naturalmente, com o conceito de teatro de Brecht, que mais tarde introduziria na realidade portuguesa. Aquando da demissão do seu pai do dito cargo, por ordem de Salazar, Sttau Monteiro regressou a Portugal, onde, por poucos anos, exerceu advocacia. Acabaria por se notabilizar como escritor, principalmente dramaturgo. Em 1961 publicou a sua reconhecida obra Felizmente Há Luar!, texto que lhe valeu o Grande Prémio de teatro. Porém, o organismo de censura do Estado Novo não autorizou a representação da peça de Sttau Monteiro, quebrando a relação autor-obra-público, que no teatro se assume mais importante ainda que nas demais formas de arte. A sua publicação somente para leitura, no entanto, fez com que a mensagem da obra chegasse a algum público, mais restrito e com acesso mais fácil às produções literárias nacionais e à sua compreensão.
José Saramago, como já referi atrás, é um escritor completo, com obras de qualidade no campo narrativo, lírico e dramático. Entre as suas obras em drama sugiro a esplêndida A Noite: aclamada como a melhor peça de teatro representada em Portugal no ano de 1979. Não obstante estes sucessos e esta qualidade que lhe é plenamente reconhecida interna e internacionalmente, Saramago surge no conjunto dos mais fabulosos artistas portugueses de sempre pelos seus romances. José Saramago, o escritor português mais importante do século XX, a par com Fernando Pessoa, será o tema dos próximos cinco artigos acerca de literatura neste blogue.
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