segunda-feira, abril 6

Literatura: A fase do Existencialismo

"O mais é o tropear dos dias em que se pulverizam os sonhos que sonhámos, as palavras que dissemos e as que em resposta no-las formularam inúteis, o sobressalto que nos agitou e em que centrámos a vida toda, a beleza que julgámos revelar e não era, o suor de um esforço vão, as perguntas que perguntaram e as respostas que nem sempre responderam, o absoluto em que nos jogámos, mesmo o disséssemos relativo, e o relativo que estava no absoluto ou menos ainda, a procura repetida, o soluço baudeleriano que passa através das eras e morre aos pés da inatingível eternidade, a pequena onda inútil que outra onda negou e foi onda necessária para que o mar se cumprisse, o destino executado na humildade com que o reconhecemos, aceitámos, levámos até ao fim. O mais, em suma, e como sabemos, é silêncio..."

Este excerto que terminei de vos fornecer integra a obra Aparição do romancista português Vergílio Ferreira, de que vos falarei hoje por quase necessidade que ocorre. Este nome apresenta-se ligado à corrente existencialista, sendo o maior vulto deste movimento literário no nosso país e das suas grandes personalidades a nível europeu. Somente para contextualizar e apresentar o pretexto deste artigo, remetendo desde já para todos os seguintes, explico que o existencialismo, como opção da literatura, surgiu em França no segundo pós-guerra, onde os horrores da guerra assolaram esperanças e ceifaram vidas que não mais regressaram nem quietaram o mundo com a sua antiga existência. A presença do Homem como criador da destruição de si próprio e o confronto da sociedade com aquilo que, em pouco tempo, a pode reduzir ao monte de destroços a que condenou a matéria sólida abriram um novo caminho, bastante inovador e original, para os artistas de todas as artes, incluindo a literatura. Numa fase inicial, ou não tanto assim, assistiu-se ao florir da literatura surrealista, debruçada sobre os problemas interiores e dúvidas do íntimo pessoal. Este interesse pelas qualidades humanas e puras do próprio ser humano reage, do mesmo modo, contra o neo-realismo que esgotava, a olhos vistos, as suas capacidades criativas com a repetição dos mesmos assuntos e da procura pelas mesmas soluções. O existencialismo é somente o aprofundar da escrita surrealista e a reflexão filosófica das questões essenciais à fundamentação e legitimação da existência humana no mundo. Após a segunda guerra mundial, na literatura mundial verificou-se aquilo que em Portugal se confirmou após a Revolução do 25 de Abril: a verdadeira liberdade dos autores e criativos. A sua escolha livre e descomprometida de assuntos e métodos de escrita e de trabalho que melhorem a qualidade das suas obras, trabalhando com base no seu potencial como artista ou no público que pretende atingir. Justamente o existencialismo fez a passagem, particularmente na obra de Vergílio Ferreira, entre o neo-realismo e a literatura contemporânea: daí que se entenda a importância notável deste grande romancista que deixou o mundo no ano de 1996.

Existem no abstracto aqueles certos casamentos que sempre nos lembramos de ver consumados, e que nenhuma vaga ou vento com maior força parece conseguir abalar. E um desses casamentos é ter a humanidade sempre visto a literatura de mão dada com a filosofia, percebendo sempre os escritores tendo desejo de se afirmarem como donos da razão e filósofos influentes para a continuidade da espécie humana, enquanto aqueles que são inicialmente filósofos procuram, um dia, demonstrar a veracidade das suas teses através da ficção e da boa escrita. E se, na História da arte e da cultura, houve momentos em que a filosofia e a literatura quiseram afastar-se um pouco para divergir os temas da segunda, também surgiram momentos, como o existencialismo, em que as duas estiveram tão próximas como o mar da foz de um rio. Como um casamento, que vai oscilando, alternando situações de crise e quase ruptura e situações duradouras de estabilidade e paz conjugal.

Muitas vezes é considerado o fundador do movimento existencialista o francês Jean-Paul Sartre, conhecido pelo seu ateísmo e pela reacção a tudo o que é relativo a religião. Este mesmo homem das letras e de ideias fecundas escreveu um dia a sua definição precisa de Existencialismo, seguindo-lhe a justificação "A existência precede e governa a essência". Esta citação permite-me abordar mais a definição desta corrente literária: ela defende que antes de sermos aquilo que hoje somos, nascemos todos com características quase plenamente idênticas, e que são as vivências e os nossos actos que nortearão o nosso futuro, tornando-nos aquilo que viremos a ser. O existencialismo fundamenta-se na negação de qualquer espécie de pré-determinação do indivíduo, sendo este responsável por tudo o que lhe ocorre e pelas implicações desse fenómeno. O Homem torna-se "condenado à sua liberdade", às suas variadas possibilidades de escolha que tornam os seus caminhos diários de um grande risco para a sua integridade e correcção. Só a vivência e as atitudes tomadas poderão, com o tempo devido, dar origem à sabedoria - capacidade que favorece o sucesso nas tarefas que nos são propostas pela vida. A vida, a liberdade de acção, a existência ou não de uma divindade que nos observa do alto, a constante solidão do ser humano ou a moral são alguns dos temas mais comuns nas documentações dos escritores e filósofos existencialistas. O individualismo que surge, à primeira vista, como uma certeza na leitura dos existencialistas, não é verdadeiro, como se pode entender à medida que lemos: na verdade, os protagonistas partem do indivíduo para formular os problemas e discuti-los de si para si; porém que a reflexão se apresenta comum a toda a Humanidade, nascendo num sujeito e vindo a ser elevada aos demais humanos.

Vergílio Ferreira (visível na segunda e terceira imagens deste artigo) protagonizou este casamento entre a filosofia e a literatura no nosso país. Diria mesmo que foi o padre que realizou o dito matrimónio, e é com alguma graciosidade que o escrevo, com o saber que escapa à maioria das pessoas. Contudo, passo a explicar: é que, de facto, Vergílio Ferreira frequentou o Seminário, completando nele seis anos da sua educação. Acabaria por se tornar professor, leccionando português e latim em escolas por todo o país, e também escritor: área na qual se distinguiu. Nasceu em 1916, no concelho de Gouveia, na Serra da Estrela. Em Melo, onde hoje se encontra sepultado, foi deixado aos cuidados de umas tias maternas, juntamente com os seus irmãos, aquando da emigração dos seus pais para o outro lado do Atlântico. A infância e adolescência vividas na Serra condicionaram sempre a produção literária do escritor. Ele mesmo afirmou, certa vez, que "um autor fixa um tema. Mas esse tema, revelando, como revela, um interesse, revela sobretudo que foi só em torno dele que o artista pôde realizar-se como tal." Assim sendo, um escritor sempre reproduz nas suas obras as vivências que testemunhou. Não admira, por isso, aos conhecedores do seu percurso, que muitos dos seus romances retratem temas como o ser professor, a neve, a educação nos seminários ou a solidão, incluindo a mais amarga forma de solidão, a que dá o nome de "silêncio" - o abandono da sociedade por parte da entidade divina; ausência de Deus.

A sua obra literária compreende-se entre dois períodos, efectuando uma transição na obra que o sugere - Mudança: o neo-realismo, em que se inicia com o romance O Caminho Fica Longe, e o existencialismo, cuja obra-prima é a já citada Aparição. Durante as suas extensas e frutíferas divagações, o autor apoia-se na visão como instrumento de consciência e árvore de sabedoria. Em 1992 foi distinguido com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário atribuído a escritores de Língua Portuguesa.

Sem comentários: