A sucessão de feitos e contrariedades que se assomam à História do nosso país em nada prejudicou a qualidade dos escritos produzidos por mãos dos nossos conterrâneos. Pelo contrário. Isto é, os acontecimentos, o que foi sucedendo aqui e além de bom e de ruim ao nosso país, apenas, em literatura, fez brotar a ansiedade, a insaciedade, a procura de energia colectiva que tarda em se mostrar devidamente útil, conforme se mostrou em variados períodos que o tempo fez o seu serviço de levar longe. É bem verdade que esta situação não se sujeitaria a ocorrer se a literatura consistisse apenas no produto da mente humana, na sua mais elevada criação, vinda do poder criativo da imaginação de cada um. Todavia, como se reconhece, esta arte é bastante mais, e a arte em si, acima de qualquer meio de a representar, é alimentada das emoções e da realidade, tornando-se um campo realista e efectivo: mais do que retratando a realidade puramente ou tentando afastar-se dela através de uma evocação mais assertiva aos sentimentos que nos enchem, a literatura reflecte a nossa espiritualidade real, aquilo que nos cerca e que nos leva à escrita ou ao gosto pela leitura de diversos temas em determinadas circunstâncias: a arte revela sonhos, receios, aquilo que jamais podemos afastar do que somos e que caminha sempre ao nosso lado, por vezes em passadas mais largas que as nossas e que nos fazem acelerar o passo com que atravessamos a nossa vida.
E Portugal, este nosso país que é o meu orgulho pela força que tem e que não revela, quase numa desconfiança despropositada sobre os seus defensores, com a História, afastada ou recente, que tão bem conserva na memória, consegue privilegiar a produção literária. A literatura de intervenção é produto dos males que se abatem sobre uma nação, qualquer uma, e é o rosto aperfeiçoado da insatisfação e dos desejos partilhados entre a maioria dos cidadãos da mesma pátria ou do mesmo mundo. Em nenhum período da nossa História a literatura de intervenção adquiriu a intensidade do período do Estado Novo, durante mais de quarenta anos no século XX. Os autores, trabalhando clandestinamente para precaução pessoal contra o exame-prévio do regime autoritário, escreviam acerca dos desejos de toda uma população de ver estabelecida uma ordem diferente, procurando a concessão de tantas liberdades quantas desejavam possuir, como uma forma de não permanecerem à margem do bem-estar e prosperidade do mundo que se desenvolvia além das nossas fronteiras com a Espanha e com o oceano. A literatura, por se expressar através das palavras, que, em todas as medidas, indubitavelmente, são utilizadas no quotidiano, revela-se uma arte muito poderosa na divulgação de um pensamento ou de uma ideia. Em paralelo com as produções culturais que o Estado Novo incentivava, como o Fado, a literatura de intervenção estendeu-se a todos os ramos da literatura, alcançando públicos variados: através da narrativa, do drama e da poesia. A narrativa de intervenção é pouco conhecida por estes termos. Os romances criados com o intuito de intervir social e politicamente compreendiam-se num movimento cultural já estudado: o neo-realismo, que denunciava as dificuldades e injustiças vividas pelas classes trabalhadoras e apontava o socialismo como possível solução para as calamidades sociais. No teatro, cuja produção nunca foi muito significativa em Portugal e em muitos outros países, esquecemos muitas vezes de notar nas mensagens que as produções pretendem transmitir e incutir junto dos espectadores. Do teatro do século XX falarei no próximo artigo. Pois, verdadeiramente, a literatura de intervenção, dando-lhe este mesmo nome, assume-se na poesia, uma vez que o ritmo dos versos e as rimas permitem a fácil memorização do próprio poema. Além destas duas características, e até mais fundamental, há que a poesia, como nenhuma outra produção literária, tem a capacidade de facilmente ser cantada, se integrada numa composição musical. E a canção, essa sim, que conjuga a literatura e a música, é o meio privilegiado de fazer passar uma mensagem: aqui está por que o principal rosto da intervenção portuguesa, não contando com personagens políticas, é o músico José Afonso.
Manuel Alegre, nascido em 1936, é um rosto reconhecido da poesia de intervenção política nacional, além de as suas convicções e espírito de mudança o terem feito, igualmente, deputado. Cursou Direito na Universidade de Coimbra; e no período do Estado Novo foi um dos rostos da oposição ao regime Salazarista. Aos vinte e dois anos de idade, Alegre manifestou o seu apoio a Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958. O nome de Manuel Alegre acabou por ressoar nos ouvidos pouco desejados da administração de Salazar, o que levou Manuel Alegre a ser chamado para a guerra de Angola, contra a qual se manifestava abertamente. Claro está, porém, que qualquer português da sua idade, mesmo apoiando firmemente as políticas de Oliveira Salazar, acabaria chamado para a guerra colonial em África. No entanto, o afastamento de Manuel Alegre da sua pátria apetecida só contribuiu para a oposição mais activa e convicta deste poeta jovem, que, segundo o próprio, herdou de sua mãe o espírito de intervenção e não o conformismo. Mais tarde, quando se viu regressado a Coimbra, foi enviado para o exílio na Argélia, onde permaneceu, expatriado, por dez longos e tenebrosos anos. É de verdadeiro patriótico ficar dez anos afastado do seu país e lutar, mesmo à distância, para que este encontre um novo rumo mais favorável, ao invés de esquecer, por mera insistência e insensatez, os seus sonhos. No exílio escreveu o mais reconhecido dos seus poemas, Trova do vento que passa:
"Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país. (...)
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não."
Após a revolução de 25 de Abril, Manuel Alegre pôde, em segurança, regressar ao nosso país, e contribuir eficazmente para a instauração de uma democracia, como sempre defendeu ser justo e meritório a uma nação unida. Entrou no Partido Socialista ao lado de Mário Soares, onde hoje continua, apesar de protestar constantemente contra a tendência à direita desse partido, tradicionalmente de centro-esquerda. Essa situação fê-lo, por várias vezes, alinhar o seu voto com os projectos do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda. Assim, o seu projecto político para o nosso país é a consolidação de uma democracia, mais à esquerda do que o Partido Socialista dos dias de hoje, consciente das condições de vida das classes mais desprotegidas e propondo a defesa dessas camadas da sociedade, optando visivelmente por um modelo socialista.
A intervenção, uma vez iniciada, não me parece que deva cessar no campo das letras e no pensamento dos intelectuais deste país e do nosso mundo. Por muito que se faça em caminho da perfeição e dos ideais vistos e revistos, e mesmo na sua direcção, que ninguém se iluda; a perfeição de sociedade, de vida, é inalcançável com o corpo, apenas passível de ser imaginada e desfrutada de olhos cerrados numa realidade que não existe. Estamos hoje ainda longe de conhecer o que idealizamos, contudo bem mais próximos do que há várias décadas atrás. Sempre haverá trabalho a fazer; nunca haverá plena satisfação em nada, nem com trabalho, nem com inércia. E eu mesmo, que por vezes me retenho na escrita, na esperança sempre viva de ver redigido o poema da minha existência ou o espelho verbal do meu inconsciente, perco-me em incertezas e parto na escrita de desejos e de projectos para a sociedade a que pertenço. E em cada vez que me debruço sobre essas questões, de novo me surgem campos de acção diferentes em que devo, primeiramente, intervir, como que para dar início a uma luta que reunirá mais apoiantes e gente que manifeste descontentamento perante o mesmo facto. Que revolta nascerá das nossas forças se elas não se unirem? Que azul nos libertará do céu encoberto se prevalecer a indolência? Que Deus subirá aos Céus se sempre o envergonharmos? Se o poder das minhas palavras fosse o de contrariar qualquer adversário ao progresso da civilização, o meu primeiro passo seria a revolução cultural, partindo da exterminação e aniquilação mais que efectiva dos publicadores literários do meu bonito país que pouco bonitos são, que gravemente desconhecem o que é literatura e privilegiam o dinheiro no campo que haveria de ser regido pela ideia e pela mestria. Portugueses de todo o mundo, uni-vos. Publicadores de todo o mundo, matai-vos.
Sem comentários:
Enviar um comentário