Quando utiliza agulha e linha, para adornar tecido, está a praticar uma das mais antigas artes da história, o bordado. Já os povos de civilizações antigas e sociedades primitivas utilizavam o bordado para adornar as suas roupas e os artigos das suas casas.
Muitos dos pontos que conhecemos e usamos hoje em dia, podem ser reconhecidos em bordados de todo o mundo, alguns trabalhados já há mais de 2 mil anos. O ponto de cruz, um dos pontos mais antigos registados, foi conhecido com tendo origem na Grécia antiga.
Durante muitos séculos, as bordadeiras trabalharam copiando os desenhos dos vários artistas directamente para os tecidos. No início do século XVII, apareceram livros que mostravam desenhos com motivos de pássaros, flores, animais e árvores, entalhados em madeira. Os bordadores, tanto homens como mulheres, aplicaram-nos nos artigos de casa e do vestuário. No final do século XVIII, o bordado era considerado como uma actividade de grande valor para as mulheres e a publicação das revistas femininas forneceram novas fontes de desenhos para bordados.
Para muitas pessoas, o bordado constitui uma parte importante da sua vida. O prazer de passar uma hora tranquila a bordar e a profunda satisfação de executar belos trabalhos, trazem alegria e dão uma sensação de continuidade à vida, tanto para homens como para mulheres, de todas as idades e nacionalidades.
Existem pelo menos quatro tipos de bordados:
O ponto de cruz é um ponto fácil de aprender em qualquer idade. Pode ser feito tanto da esquerda para a direita, como da direita para a esquerda, mas é importante que os fios superiores do ponto de cruz tenham todos a mesma direcção em todo o desenho.
O ponto de cadeia é um dos pontos mais populares do bordado sendo usado para os contornos, para confeccionar bandas e orlas de outros pontos e também para preenchimento de desenhos. Neste ponto é importante que se mantenha a tensão correcta e que as argolas sejam todas do mesmo tamanho e formato. É utilizado para execução de projectos modernos e muito simples.
O ponto pé de flor é, frequentemente, usado para bordar os caules das plantas dos desenhos, mas geralmente é utilizado como ponto de contorno. Este ponto é trabalhado da esquerda para a direita.
O ponto atrás é muito útil para marcar os contornos no bordado de estilo livre, realçando assim o seu bordado. É importante que todos os pontos sejam do mesmo comprimento.
Há compositores e produtores que, mesmo não sendo apreciados por todos, ou conotados com a música comercial das lendárias Doce, dos efémeros Gemini, ou do dinossauro José Cid (conotação essa que não necessariamente verdadeira, que ele criou mais que músicas orelhudas), deixam uma marca importantíssima no panorama nacional português. E este facto leva-me a uma curtíssima reflexão, antes de dar por iniciado o artigo. De facto, por detrás das vozes, há muito mais. Os artistas devem ser admirados claro., as vozes é que fazem a canção reconhecível aos ouvidos de todos. Mas e quem cria a melodia? Quem dá rumo à letra? Deve ser esquecido? Afinal de contas são estas pessoas que fazem nascer o esqueleto da canção. As cordas vocais dos mais ou menos bem sucedidos intérpretes apenas a complementam, e isto é demasiado importante na música pop, que se importa mais com o refrão inesquecível por horas, do que com o poder da voz do cantor, ou a mensagem subliminar da música.
Não sei se me faço entender. Mas a música pop vive mais da estrutura base da canção, que da sua interpretação final. Mais que todos os géneros, é um em que os compositores e produtores devem ser valorizados.
Tozé Brito pertence a este grupo, estando por detrás de uma grande quantidade de sucessos lusitanos, especialmente pop. Porém, apesar da inclinação para a música célere ou para a balada simples, romântica e emotiva, Tozé Brito foi dos compositores mais ecléticos que Portugal teve, colocando um pezinho no Fado, na Música Folk, e nas tentativas de Jazz feitas por menos de meia dúzia de artistas.
A carreira de compositor de Tozé Brito inicia-se em 1968, nos Pop Five, com a música “You’ll see”. E desde aí não deixou de compor, tendo enormíssimas influências do pop estrangeiro, mesmo ao compor em português, para portugueses. Tozé confessa, no entanto, que foi com o mestre da letra de intervenção, Ary dos Santos, que viveu as experiências mais gratificantes da sua vida, enquanto compositor.
A certa altura começou a compor para cantores da moda, como Tony de Matos e Franciso José, e mais tarde para as Doce, os Gemini (que ele integrava), Paulo de Carvalho, Adelaide Ferreira, Carlos do Carmo, José Cid, Simone de Oliveira e Ana Moura. Lança, enquanto administrador da Mar (discográfica em parceria com a EMI), lança nomes como Lúcia Moniz, Francisco Mendes e D’Arrasar.
Abaixo ficam algumas das composições que beneficiaram do dedo mágico de Tozé Brito:
José Cid – 20 anos
Doce – Amanhã de manhã
Adelaide Ferreira – Papel principal
Simone de Oliveira – À tua espera
Gemini – Pensando em ti
Vítor Espadinha – Recordar é viver
Para terminar, algumas citações do compositor que mais se pronuncia contra o download ilegal.
"Nunca senti que tivesse grande vocação para cantor. Como músico ainda me diverti um bom bocado."
Não é o único a achá-lo. A percentagem mais significativa de conhecedores do trabalho de Tozé Brito prefere-o como compositor e produtor.
"Eu nunca fiz censura estética. Acho que este é o termo exacto. Nunca tive a preocupação de pensar não vou escrever coisas para esta pessoa porque aquilo que ela faz não me agrada. Não. Vi sempre as coisas ao contrário, isto é, não abdico duma determinada linha, que é a minha, e se a pessoa conseguir adaptar-se à minha canção, muito bem. Ou seja: escrevi algumas canções para pessoas com que não me identifico de todo, em termos estéticos, em termos musicais. No entanto, aceitei esses pedidos, sempre. (...) Foi o que se passou com o Clemente, com o Dino Meira... Eram pessoas que, desde que me pedissem uma canção, eu era incapaz de os tratar de uma forma diferente da maneira como tratei os outros."
Outra das características que o levou tão longe é a fidelidade a si próprio, e ao seu género, ao qual os intérpretes tinham de se adaptar.
"Há dias em que me apetece pegar na guitarra e compor. Ou pegar numa folha de papel e escrever uma letra, impulsionado sabe-se lá porquê: Às vezes a ver um filme, uma simples frase de um actor, é o suficiente para me fazer levantar como uma mola. E quantas vezes aconteceu..." Sem fazer plágio, Tozé Brito sempre se inspirou nas frases de outrem, para criar histórias, para compor canções, algo que acontecia de forma espontânea, e quase nunca preparada. São todos estes factores que, em conjunto, que tornam o trabalho de Tozé Brito “bem bom” de se escutar.
Parte integrante do processo evolutivo da vida de cada um, os momentos de grande concretização figuram entre todos os que já vivemos, adquirindo sempre, de imediato ou a um médio prazo, uma qualidade de motivação para tudo que venhamos a desenvolver com o nosso próprio esforço. O processo de consumação de todos os sucessos é, em primeiro, o acto de semear, depois o esforço contínuo que se realiza e desenvolve, depois o suor que resulta e, como última etapa, encontramos o efeito abonatório do mérito. Em muito do que é produzido falta a finalização da derradeira etapa que acabei de referir, o que, por ordem humana e de haver já testemunhado em mim semelhante injustiça, lastimo que perdure numa sociedade que é tida, pelos mais favoráveis à vida que ela propõe, como uma sociedade de esforço e mérito que, unidos, elevarão a honra de um sujeito. Todo este ideal ainda nos fascina, e é bem verdade que tudo aquilo que de nós exige o fascínio, o exige particularmente por ser algo ainda pouco visto: uma novidade a que, por vezes, aderimos com algumas reservas de início. Assistir à consagração efectiva e meritória de um longo trabalho em qualquer que seja a área, seja cultura, seja economia ou justiça, e mais áreas existirão, é algo com que dificilmente nos deparamos no quotidiano que vivenciamos e vamos vivenciando. Desta forma, o trabalho de muitos indivíduos resultará apenas no cansaço e no consequente desânimo de tarefa que não recompensou o esforço empreendido para o efeito. E, apenas para demonstrar com perfeita exactidão um dos horrores do mundo que nos integra, os poucos triunfos que um trabalhador alcança são, no grosso das vezes, alvo das piores críticas que não provirão senão de um sentimento repulsivo: a inveja.
Não esqueçamos que me refiro a José Saramago, o qual é digno de todas as condecorações que já possui e que foi coleccionando no decurso dos anos em que produziu tantos e tantos objectos de cultura. Neste caso específico, não em casos isolados que estejam a este alheios, o factor temeroso (a inveja), e conservador, teve um papel preponderante na opinião de muitas personalidades que expressaram o seu juízo relativamente à mais alta consagração que José Saramago obteve, que corresponde igualmente à condecoração de mais alto valor já atribuída a um escritor português: o Prémio Nobel da Literatura, no ano de 1998. No conjunto dos vultos portugueses socialmente reconhecidos que se expressaram acerca da atribuição do Nobel, encontramos três graus de aceitação da decisão da Academia Sueca. Em primeiro lugar damos com o conjunto de indivíduos que aplaudem, se necessário de pé, a dita decisão que premeia o escritor José Saramago. Em segundo lugar, encontramos os cépticos que, apesar de se mostrarem satisfeitos com o prémio, expressam sérias reservas em relação à decisão. Por último, há ainda aqueles que discordam com a escolha.
No primeiro conjunto de individualidades de grande simpatia descobrimos o Presidente da República de então, Jorge Sampaio, assim como o Primeiro-Ministro António Guterres (hoje entregue a preocupações muito distintas com pessoas que, em oposição a José Saramago, não saberão, muitas delas, ler ou escrever), ministros e outros políticos, como Manuel Maria Carrilho, Mário Soares ou Carlos Carvalhas, o bispo timorense D. Ximenes Belo, o rei de Espanha, e ainda, por exemplo, membros da Associação Portuguesa de Escritores. Todos estes, sem reservas algumas, mostraram o seu contentamento perante a atribuição do primeiro Nobel da Literatura da língua portuguesa, e até agora único. Este entusiasmo foi a todos inesperado: o secretismo da Academia Sueca impede qualquer pessoa de considerar que tal nome de tal autor estará dentro da discussão para vencedor ou se nem sequer se apresenta como candidato. Até à data em questão, e mesmo até aos dias de hoje, os Prémios Nobel da Literatura são de uma justiça muito questionável, tendo em consideração as próprias pessoas com poderes de decisão na escolha dos vencedores. Como exemplo, os vencedores de anos anteriores poderão influenciar directamente as decisões do presente: isso permite que um país, quantos mais prémios possuir, mais possuirá pelos interesses patrióticos dos seus autores já consagrados. Não causa admiração que países como a França, os Estados Unidos ou o Reino Unido estejam entre os países mais condecorados com este prémio internacional. A qualidade de muitos destes escritores franceses ou de língua inglesa apresenta-se extremamente aquém da de José Saramago e de vários escritores recentes da língua portuguesa, que entretanto vieram a falecer sem receber tal distinção, como Vergílio Ferreira, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner. Por outro lado, é igualmente notável que tão poucos prémios Nobel tenham sido dirigidos a mulheres: o conservadorismo, talvez causado pelo frio que se faz sentir em Estocolmo, ainda está patente nas decisões de um assunto tão sério como a cultura.
No segundo conjunto de personalidades temos os reservados, ou talvez os satisfeitos mas acobardados devido à inveja latente ou à ignorância perante questões de estilo e linguagem: entre outros, saliento os nomes de D. Manuel Martins, um religioso, Eugénio de Andrade, poeta, e Maria Teresa Horta, uma escritora portuguesa. D. Manuel Martins frisou que, enquanto português, o contentamento é inerente, apesar de condenar o ateísmo de José Saramago que, na sua opinião, deveria servir-se da sua excepcional capacidade de escrita para desenvolver temáticas religiosas ou, no mínimo, menos heréticas. O poeta Eugénio de Andrade, o qual admiro formidavelmente, considerou que o prémio, ainda que atribuído com justiça à literatura portuguesa, deveria ter sagrado um poeta e não um prosador, por ser da opinião de que o génio literário português está mais visível na poesia. Aceito, sem qualquer tipo de reservas, que a poesia portuguesa, muito em particular, merecia já uma condecoração deste género; porém, quem para a receber no ano de 1998? Miguel Torga estava morto... Fernando Pessoa estava morto há muitíssimo tempo... António Gedeão não estava mais vivo que os outros... Recebê-lo-ia Sophia de Mello Breyner (para felicidade do seu horroroso filho), ou recebê-lo-ia ele próprio, Eugénio de Andrade? É possível entender esta opinião com alguma inveja da parte do poeta. Por fim, Maria Teresa Horta considera que muitas autoras portuguesas possuem uma obra tão ou mais relevante do que José Saramago. Não é novidade que defendo o sexo feminino nestas questões onde o masculino ainda parece ter um lugar de destaque e de primazia... No entanto, que mulher terá obra equivalente à de José Saramago, nomeadamente no género narrativo? Apenas uma: Agustina Bessa-Luís, que, não sendo, na minha opinião, merecedora de comparação equitativa com José Saramago, possui, na opinião deste último, o maior génio literário português. Por tal, aguardo com grande expectativa o próximo Prémio Nobel português da Literatura, que será atribuído, se Deus for favorável, à grande Agustina.
Por último, encontramos as duas personalidades que discordaram com a decisão da Academia Sueca: D. Duarte de Bragança (o futuro rei que nunca o será) e Sousa Lara. O primeiro mostrou-se ousado a ponto de questionar a competência dos membros do júri, que, no seu entendimento, não leram, com toda a certeza, as obras de José Saramago, o qual escreve de uma forma "difícil e pesada" e "pouco cristã". Sousa Lara, por outro lado, vale todas as reprimendas morais que me cabem pensar. Este antigo deputado foi o responsável, no início da década de 1990, pela deslocação de José Saramago para o país vizinho, após este deputado haver censurado o seu livro Evangelho Segundo Jesus Cristo, impedindo-o de se candidatar ao Prémio Literário Europeu.
No entanto, mesmo a nível internacional, muitas personalidades, algumas delas inseridas nos círculos de decisão dos Prémios Nobel, atribuem alguma injustiça à sua atribuição no ano de 1998: segundo muitos, a condecoração do nosso Saramago resultou de uma campanha profissional de publicidade que terá resultado no conhecido prémio. Alguns vão mais longe, denunciando igualmente a Alemanha de, no mesmo ano, haver praticado uma campanha de contornos semelhantes. Exploremos o conteúdo destes juízos: um ano antes da atribuição, José Saramago foi, na Suécia, objecto de muitas atenções da elite literária. O escritor português foi convidado a realizar uma visita a Estocolmo, capital oficial da Suécia, onde discursou na Universidade Estatal e num Seminário e deu variadas entrevistas aos mais diversos órgãos de comunicação social. Na mesma data, a televisão estatal sueca produziu um documentário relativo a José Saramago. Um mês mais tarde, a enorme Feira do Livro de Frankfurt, a maior do continente europeu, elegeu Portugal como o país em destaque na edição desse ano. Onze meses mais tarde (que, segundo os analistas que discordam com a atribuição, deverá ser muitíssimo pouco tempo), José Saramago é sagrado vencedor do Prémio Nobel da Literatura. Para muitos, o mérito faltou nesse ano; para outros, como eu, foi um ano de invulgar capacidade de projecção do nosso país: o mundo encontrava-se de olhos postos em Portugal, graças à organização da Exposição Internacional dos Oceanos, e muitos outros países, em oportunidades como as já referidas, escolheram explorar o melhor que em Portugal era feito em várias e diversas áreas. Naturalmente que José Saramago, decorrente tal facto da sua grande qualidade e reconhecimento internacional que sempre teve enquanto escritor, beneficiou dessa projecção, atingindo o momento de maior glória de um escritor português.
Terminarei o presente artigo com uma informação que talvez silencie a malvadez de tantos quantos não entendem o talento imenso de Saramago: o crítico literário americano Harold Bloom, conhecido como o mais brilhante de todos os críticos deste planeta (o mesmo que, como referi há alguns meses, reconhece Fernando Pessoa como o poeta mais influente do século XX, a par com Pablo Neruda), vê em José Saramago o maior génio literário vivo: as suas exactas palavras foram, na língua de Shakespeare, "the most gifted novelist alive in the world today". Mais palavras julgo não serem necessárias. Não deveria "o mais talentoso romancista vivo do mundo actual" receber o Prémio Nobel da Literatura, se tantos outros o recebem? Sim... e mais: deveria receber dois!
Peço desculpa pela ausência do meu artigo no último sábado, isto porque com a apresentação da peça de teatro Os Maias nos Aprendizes do Fingir não tive tempo de fazer um artigo sobre o Cinema.
Realizou-se no último domingo, dia 17 de Maio de 2009, a grande gala anual dos Globos de Ouro.
Esta gala é organizada pela revista Caras em parceria com o canal de televisão SIC e é atribuído um Globo de Ouro aos artistas nomeados em diversas categorias (Cinema, Música, Teatro, Moda, Desporto) e é ainda atribuído o Prémio de Mérito e Excelência.
Esta gala começou no ano de 1996 até aos dias de hoje. Na primeira Gala dos Globos de Ouro, na categoria de Cinema os vencedores foram:
Melhor Filme:Adão e Eva, Joaquim Leitão Melhor Actriz: Maria de Medeiros, no filme Adão e Eva Melhor Actor: Joaquim de Almeida, no filme Adão e Eva Melhor Realizador: Joaquim Leitão, pelo filme Adão e Eva
Neste ano os vencedores dos Globos de Ouro foram:
Melhor Filme:Meu Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes
Melhor Actriz: Sandra Barata Belo, no filme Amália, o filme
Melhor Actor: Nuno Lopes, no filme Goodnight Irene
Neste ano dos Globos de Ouro o Prémio de Mérito e Excelência foi atribuído ao cineasta Manoel de Oliveira pela sua longa carreira e pela qualidade e dedicação a todos os seus filmes realizados.
Estas galas de atribuição de prémios aos artistas portugueses são a maior retribuição de anos de trabalho que naquelas galas são reconhecidos. Saber que os trabalhos ao qual todos os actores, músicos, estilistas e outros artistas se dedicam são reconhecidos e valorizados dá ainda mais força e vontade de continuar a realizar projectos ainda maiores e exigentes. Espero que estas galas continuem e que as atribuições destes ou outros prémios sejam justas e que dêem mais força e vontade a todos os artistas portugueses.
O que tenho hoje em mãos é tarefa bem complicada, uma exigência para a qual muitos esforços não bastam que nos guiem na direcção do prometido. Olhar José Saramago como um poeta, que é o que me propus hoje exemplificar, foi, noutros tempos, bem mais simples do que o é pelos dias de agora: em alguns anos, todas as suas palavras que nas livrarias iam surgindo com o sabor fresco da novidade limitavam-se a versos, poemas alinhados num contexto preciso ou pouco rigoroso. Após essa fase, como qualquer autor, este alterou o seu método, redigindo com maior frequência romances no seu registo prosaico bem reconhecido por todos. Esse mesmo registo foi o que lhe valeu a atribuição do mais alto prémio mundial que distingue intelectuais envolvidos nesta arte, ficando a poesia cada vez mais afastada do rosto que nos acostumámos a imaginar por trás dos trabalhos que lemos da sua autoria. Ao todo, Saramago publicou três livros de poesia, com um intervalo entre publicações variável entre quatro a cinco anos. Eles, ainda hoje vendidos como marcos do início de uma carreira sólida de artista moderno, receberam, da parte do escritor, os seguintes nomes: Os Poemas Possíveis, Provavelmente Alegria e O Ano de 1993, todos publicados oficialmente algures entre o final da década de sessenta e o início da década de setenta e lidos por muitos portugueses desde então ate hoje. Não estão, efectivamente, integradas no conjunto de algumas obras de José Saramago que consideremos, com base em determinadas vantagens qualitativas, as mais formidáveis, e os seus poemas apenas, sob uma análise quase inconsciente dos mesmos, com dificuldade farão algum leitor apreciar a escrita de Saramago, se não a apreciasse antes de contactar com esta poesia. Rectificando, pois assemelho-me a delinear pelo discurso que a poesia de Saramago não merece a sua alta consideração, que, por uma análise algo mais elaborada, devemos valorizar em grande medida esses poemas: eles foram o fruto de um génio literário que, com eles, amadureceu, e que necessitava amadurecer o bastante para alcançar a mestria que viria a obter como romancista. A poesia foi, com efeito, a alternativa que Saramago não temeu, quando o seu segundo romance foi redigido e rejeitado, e que permitiu a sua constância de publicações, nunca o afastando desta sua arte. A sua maturação como escritor passou muito pela racionalização da poesia.
Um influente poeta português da modernidade, Eugénio de Andrade, como possivelmente venha a contar-vos melhor no próximo artigo, declarou certo dia, após Saramago ser galardoado com o conhecido prémio Nobel, que esse reconhecimento seria mais justo de laurear um poeta e não um prosador. É bem certo que foram os seus romances, tão lidos e tão fascinantes, que sugeriram fortemente o seu nome para a sua sagração: esquecem, porém, os próprios colegas do mundo literário, que José Saramago, no início da sua carreira, compôs muita poesia, ainda que bem longe da qualidade que outros registaram nesse campo, como o próprio Andrade ou Miguel Torga, ou mesmo Sophia de Mello Breyner. Se, pelas palavras do poeta, a poesia parece ser a expressão máxima de todo o ser português, José Saramago evidencia-se como um aparatoso caso de distinção, que se desvia daquilo que é regra. Com a prosa, o nosso mestre, assim lhe chamemos, obteve o reconhecimento que nenhum romancista do século XX esteve próximo de conhecer.
Quem melhor me souber descrever segundo aquilo que habitualmente escrevo, mais em literatura do que propriamente nestes artigos com um certo carácter de jornalismo ou de crónica, talvez me reconheça uma inflexível tendência para o subjectivo dos assuntos, emitindo opiniões pessoais onde o discurso de reflexão não seria proposto pelo grosso dos autores. Compreenderia o teor dessa mensagem se ma viessem dirigir; contudo que a sensibilidade que deixo persistir no meu narrador se altera em cada nova situação com que se depara, e essa mesma sensibilidade difere bastante daquela com que vivo os dias enquanto ser humano, como existindo, num clima por vezes pouco harmonioso e tranquilo, duas personalidades distintas dentro deste mesmo corpo, uma delas apenas se manifestando nas circunstâncias de escritor e omitindo quase na totalidade este outro que é mais visível ao olhar de todos. Não sou, porém, insensato de julgar-me mestre em confrontação com a opinião que todos parecem ter e que aceito como elogios: no seguimento deste artigo, quero certificar-vos que a opinião pessoal que eu possa ter, não vo-la manifestarei. Seria absurdo tratar a poesia de José Saramago sem os devidos exemplos que pedem um breve comentário, e se esse comentário com dificuldade poderá sair isento de um toque pessoal, isenta poderá ser a escolha dos poemas de que falarei e que para aqui copiarei para vossa leitura. O primeiro que trago é o de abertura do livro Os Poemas Possíveis.
"Dirão outros, em verso, outras razões, Quem sabe se mais úteis, mais urgentes. Deste cá, não mudou a natureza, Suspensa entre duas negações. Agora, inventar arte e maneira De juntar o acaso e a certeza, Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes."
Este poema de duas estrofes e com esquema rimático consiste no conceito de literatura mantido pela consideração do autor: descreve o processo de criação literária como um processo onde a delicadeza dos excessos domina como um rei no meio de tantas outras condições fundamentais à concretização de um texto. O acto de escrever, somente este, simples ou exigente que seja, baseia-se no próprio vício de escrever e não sucede, neste autor e em muitos outros como eu próprio, de outras causas acima desta: um vício cruel ou soberbo, que outrem nos oferece em troca dos nossos mesmo resultados de participar neste jogo de criação, em que pouco se ganha. A comparação com que termina é a de quem rói as unhas, confrontação essa que eu entendo infelizmente bem, dado eu possuir ambos os vícios, e ainda que eu julgue uma dádiva de Deus saber escrever bem e com correcção, talvez, segundo diferentes perspectivas, esse acto seja tão miserável quanto o de roer as unhas; chega a surgir o problema para o qual parecemos ter sempre a resposta certa: poderá um vício ser bom? Não, dizemos sempre. Será?
"Caminhámos sobre as águas como deuses, E fomos deuses. Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram, E os traços lá ficaram. Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos: Não são os nossos tectos."
Este outro poema de singular simplicidade e sinceridade é parte do livro Provavelmente Alegria, e descreve o passar do tempo sobre as sensações, os gestos e as emoções que duas pessoas podem experimentar. O facto sentimental que o poeta nos reporta não diz apenas respeito a dois amantes, mas igualmente a dois amigos ou a dois elementos da mesma família. A sensação é a de sermos absolutamente contentes num instante, não significando por isso que essa felicidade se prolongue através dos anos, ou mesmo que a felicidade do conhecimento e da experiência venha a demonstrar-se contentamento depois de passar o tempo. Os indivíduos, dos quais somos todos exemplo ilustrativo, alteram-se ao sabor das vivências e subjugam-se às diversas realidades que fazem os dias nem sempre se perceberem como uma sucessão perfeita de horas sobre horas, num ciclo invariável. Somos hoje, estamos hoje como estamos, porque nos rodeiam as condições para o sermos. Seremos amanhã diferentes de hoje porque também o dia é outro, com o fim do dia anterior sumiu-se a forma de se estar naquele dia e de se fazer o que se fez. Esta realidade mais se notará se considerarmos a possibilidade de a analisarmos com a diferença de meses ou anos de entremeio.
Aqui vos trouxe parte da poesia do nosso querido escritor. Recomendo vivamente a todos os interessados que leiam alguns poemas e alguns versos de Saramago: é interessante verificar que a construção frásica que tanto ligamos à sua escrita não se limita a surgir em romances ou em prosa, mas também noutros géneros literários. Por fim, em gesto de conclusão, deixo-vos com um derradeiro poema. Fala do amor e da força de uma ou duas pessoas. Lanço-vos o desafio, do qual deverão depreender uma conclusão através de uma mensagem subliminar: leiam esse poema como dirigido a vós em todas as circunstâncias da vida, não só no amor, mas também nos projectos de realização pessoal, na família e no modo de encarar a sucessão dos dias de que tenho vindo a falar como repetição constante. Perdoem-me.
Ainda dizem a não polícias por aí, pela rua. Podem não estar por aí, nos bairros melhores ou piores, mas andam pelas ruas da história do Rock português e nos ouvidos dos portugueses que os ouviram e ouvem. Das bandas que vos vou falar hoje, uma é um caso de sucesso que durou dos anos 80 até hoje; outra teve algum sucesso, desapareceu por uns tempos, e voltou há pouco tempo; outra é totalmente desconhecida de 99,9% da população portuguesa, e foi mais efémera que um bom disco da Ruth Marlene. Falo-vos, respectivamente, dos GNR, dos Trabalhadores do Comércio, e dos PSP. A ligação da primeira e da última à polícia é óbvia (a sigla senhores, a sigla). Já os Trabalhadores do Comércio foram inseridos neste artigo sobre as "forças policiais" dos anos 80, uma vez que o seu êxito maior intitula-se "Chamem a pulíssia", de erros crassos no título, mas propositados, demonstrando o humor nortenho do grupo.
Atendendo ao apelo dos Trabalhadores do Comércio, provavelmente tradicional, que nos anos 80 não havia centros comerciais, trouxe a polícia à baila. E comecemos pela PSP. Aliás, pelos PSP, o Projecto Som Pop, grupo que, quando mencionado em termos musicais, é tido como uma alcunha aos GNR, como algo do género, "Antes havia um grupo chamado PSP!", "Ahahah, tens tanta piada. Toda a gente sabe que esses são os GNR, e tu estás apenas a mangar connosco". Pois enganam-se! Houve mesmo um grupo com este nome.
O fundador é, pois claro, um ex-membro da formação inicial dos GNR. Formaram-se no Porto, e eram formados por Vítor Rua (o ex baixista, guitarrista e vocalista dos GNR), Dom Lino que tinha a seus cuidados a bateria, e Luís Carlos, o homem que tratava de adicionar sintetizadores e ritmos computorizados, tão célebres na época. Gravaram o seu único disco para a editora Ama Romanta, uma entidade independente que surgiu nos anos 80, da qual fazia parte João Peste dos Pop dell'Arte. O disco intitula-se "Pipocas" , editado pela Ama Romanta com independência em relação ao totalitarismo que controla o mercado musical, com as suas inevitáveis extensões nos mass-media.
Do alinhamento do disco fazem parte temas como "Pico Fininho", "Oh, So Much Love", "Fadó-Samba", "Pi Pi Pi Pá", "Toillet Zone", "Portugal Na CEE" (uma nova versão muito mais lenta que a original) e ainda os temas "Instrumental n.º2", "Instrumental n.º3", "Instrumental n.º 4", "Instrumental n.º 5" e "Instrumental n.º 6". Recorde-se que o "Instrumental n.º1" era o lado B do single "Sê Um GNR". Neste trabalho Vítor Rua conseguiu, finalmente, ter liberdade total para fazer o que queria, sem estar condicionado aos ritmos do mercado discográfico, algo que não acontecia aos GNR. É, por isso, que este disco "Pipocas" é associado à música moderna portuguesa, primando por ser um dos seus discos mais experimentais. O estilo de música do disco varia entre o samba, a Pop, a canção latina, entre outras, com canções cantadas em português e inglês e até em castelhano, com sotaque português.
Após a edição deste disco a banda terminou. Rua continuou com os Telectu e regressaria com os Pós-GNR, sendo que depois chegarão a haver processos em tribunal entre Vítor Rua e GNR. Aparte de todas a querelas, pode-se concluir que, apesar da raridade (actual) das amostras da música dos PSP (nenhuma se encontra na Internet sequer), estes tiveram grande importância para o seguimento da música experimental portuguesa, mais que muitas bandas e artistas de carreiras enormes. Um único álbum marcou, efectivamente, a diferença, sendo que não é a quantidade que determina a excelência do artista, mas a qualidade. A única quantidade que interessa é a quantidade de originalidade, e essa não lhes faltou, sendo um projecto P.ara S.uperar P.ortugal, isto é, ultrapassar preconceitos musicais, e evoluir.
O Grupo Novo Rock (GNR) constitui-se oficialmente em Setembro de 1980. Os elementos do grupo eram Toli César Machado (bateria), Alexandre Soares (guitarra) e Vítor Rua (guitarra). Pouco tempo depois entra para a banda o baixista Mano Zé que já tinha tocado com Rui Veloso. O primeiro single, com os temas "Portugal Na CEE" e "Espelho Meu", é editado em Março de 1981. O single é um grande sucesso vendendo mais de 15.000 exemplares. Mano Zé abandona, Miguel Megre entra para o seu lugar e mais tarde iria também ocupar-se das teclas. Ainda em 1981, o grupo lança o single "Sê um GNR" que acaba por vender mais do que o primeiro. Em Setembro entra para a banda o vocalista Rui Reininho.
O primeiro LP, "Independança", é editado em 1982. O disco foi um êxito em termos de crítica, mas é um fracasso em termos de vendas. O disco inclui outro grande sucesso, "Hardcore (1º Escalão)". O lado B do álbum incluía a faixa "Avarias"... com 27 minutos de duração. A seguir à edição do álbum começam a aparecer os problemas internos na banda. Miguel Megre sai e Alexandre Soares é convidado a sair. Em Agosto de 1982, os GNR actuam no Festival de Vilar de Mouros, apenas com Reininho, Toli e Rua. O concerto chega mesmo a ser anunciado como o último do grupo.
Toli e Vitor Rua são convidados a produzir o álbum de estreia de António Variações. As gravações param a meio porque o estúdio estava super-lotado. Vitor Rua e Jorge Lima Barreto deslocam-se a Nova Iorque e quando regressam Rua decide abandonar o grupo. Então o baixista Jorge Romão (ex-Bananas) e o teclista novo entram para o grupo e Alexandre Soares regressa. O local de ensaios passa para a cave da casa de Alexandre Soares. "Os Homens Não Se Querem Bonitos" é editado em Julho de 1985. O disco inclui clássicos como "Dunas" e "Sete Naves".
Alexandre Soares sai do grupo em 1987. Para o seu lugar entra, temporariamente, o guitarrista Zézé Garcia, dos Mler Ife Dada, que actua, em Abril, no concerto do Coliseu dos Recreios. Ainda em 1988, Zézé Garcia regressa em definitivo ao grupo depois de se desligar dos Mler Ife Dada. O álbum "Valsa dos Detectives", com produção do francês Remy Walter, é editado em Março de 1989. Os maiores sucessos deste disco são "Impressões Digitais", "Morte ao Sol", "Dama Ou Tigre" e "Falha Humana".
Mais tarde, já depois do virar do século, para as gravações de "Popless" recorrem aos préstimos do produtor Nilo Romero. O primeiro single é "Asas (Eléctricas)" tema incluído na banda sonora do primeiro telefilme da SIC, "Amo-te Teresa". O disco inclui também os temas "Popless" (com direito a clip censurado na tv!!!), "L's" e "Essa Fada". E enfim, contar mais para quê. Os GNR, depois de tantas entradas e saídas no grupo, mantiveram sempre a sua genialidade, dando sempre passos à frente do seu tempo, procurando a originalidade sem se desviarem do seu G.éN.eR.o.. E por isso são o que são hoje, um grupo respeitado, e de qualidade.
Em 1979, Sérgio Castro e Álvaro Azevedo (membros dos Arte & Ofício) dão corpo a um projecto paralelo a que chamam Trabalhadores do Comércio.
A característica principal do grupo era o facto de cantar em português, com sotaque à moda do Porto, enquanto os Arte & Ofício construíram toda a sua carreira cantando em inglês. Também havia a questão das letras das músicas, que tinham um certo humor.
O seu disco de estreia, editado em 1980, foi o single intitulado "Lima 5", continha um refrão que dizia o seguinte: "Eu só paro lá no Lima 5, Sou um meu de grabatinha e brinco". A voz do grupo era a do sobrinho de Sérgio Castro, João Luís Médicis, então com 7 anos.
O grupo faz algumas primeiras partes dos Arte & Ofício e edita em 1981 um novo single: "A Cançõm Quiu Abô Minsinoue" (traduzindo: A Canção Que o Avô Me Ensinou).
O primeiro álbum "Tripas à Moda Do Porto" foi gravado em Londres e contém o tema mais conhecido da banda: "Chamem A Polícia" (ou "Chamem a pulíssia", no título original.) Outros temas, onde o humor tem lugar marcado são "Atom Messiu, Comantalê Bu" ou "Paunka Roque" (???), para além de "Birinha", "Sim, Soue Um Gaijo do Pôrto" e "Quem Dera".
O segundo álbum foi um fracasso, e todos os outros passaram despercebidos. Os maiores momentos da carreira da banda, após o primeiro álbum foi a ida ao Festival RTP da Canção com o tema "Os Tigres De Bengala", que se classificaria em segundo lugar, e o CD gravado em 1990, se bem que o impacto não foi tanto.
De 1996 a 2007 o grupo rock de humor próprio faz uma pausa, sendo neste último ano que voltam aos palcos, por culpa do seu hit "Chamem a Pulíssia", estando de novo na merecidíssima ribalta.
P.S. (P.) Este artigo tem como objectivo fazer-vos perceber que, por vezes, as forças policiais fazem alguma coisa de evolutivo. Agradeçam ao apelo aos comerciantes do Porto...
O nome que atribuo a este artigo de hoje pouco diz respeito ao seu fundamento teórico, antes se insinua em relação a uma gama de sinais do Além que tenho recebido na minha intimidade e que escolho expressar ao geral de público, como se tivessem muito poder de destruição se ficassem como segredos meus, mas fossem inofensivos sinais se o seu risco se dissipar por muitas almas. Diz, assim, mais respeito a um desabafo que muitos considerarão de bom humor, e que por noção de estética e muitas outras que o tempo me fez adquirir no conjunto das demais, pretendo que construa o início imediato deste artigo que me apraz divulgar-vos. Passam já certos anos, mais longos que os dias se estes se isolam na conjuntura que se forma em nós pensantes, desde que me dei perante um teste de personalidade que, de uma forma genérica, não resultou em novidade alguma para o meu conhecimento de mim mesmo: somente teceu sobre mim uma consideração que logo compreendi ser verídica. Nela se dizia que as minhas horas de maior actividade são as que se dão enquanto os outros dormem, e eu insisto em não fechar os olhos. Durante todo o tempo que tem passado, essa situação, que sempre reconheci como acertada tendo em conta o que nitidamente entendo de mim próprio, apenas se tem afirmado consistentemente em ocasiões muito singulares, como por exemplo a frequência de dias em que durmo a sesta ou passeio e vagueio durante a tarde, para trabalhar e esforçar-me até altas horas do serão e da madrugada, quando já todos repousam de um dia cheio, o qual passou por mim de uma forma dissonante. Contudo, descobri há coisa de semanas, ou mesmo meses, que o teste podia estar a avisar-me de que um grande prazer, então escondido ante a máscara da improbabilidade, esperava a minha atenção: encontrei muita satisfação quando um dia, todos já deitados e alguns roncando durante o seu sono, cheguei com a ideia de não me deitar também eu, mas antes disso ver um filme, apreciá-lo na paz enorme que o silêncio e o escuro conseguem conceder aos seus apaixonados. Em mim, a noite tem a forma de singela tentação; mesmo que a minha actividade venha a significar que me sirvo menos do sono para o repouso pessoal, o prolongar dos trabalhos ou do lazer pela noite fora têm-me mostrado uma nova maneira de viver os dias, e como eles podem ser bem maiores do que julgamos. O dia tem, efectivamente, vinte e quatro horas, às quais se seguem outras vinte e quatro horas; para as comuns das pessoas, o dia tem dezasseis horas, porque o sono de oito horas diárias é nelas uma certeza inabalável e inviolável. Ora, no meu entendimento da questão, o sono insere-se na altura em que preciso dele, seja de tarde, seja de noite.
Todo este horror de linhas escritas para vos contar que há dois dias vi um filme, que adquiri nas férias da Páscoa passadas, sozinho, no calor do meu leito. O que me fez preferir esse filme e preterir as outras hipóteses foi a magnífica actuação do meu actor de eleição, Al Pacino, que nos leva para além do imaginável trabalho do melhor actor em que pensemos. O tema do filme, contudo, pouco ou nada interferiu na escolha a que procedi: aborda, através da personagem que Pacino interpreta com mestria, a cegueira. Esquecia-me eu, nesse tempo, que no dia seguinte, ontem, veria, na companhia de dois íntimos amigos, o filme Ensaio sobre a cegueira, a partir do romance de José Saramago. Ao início jogando com a situação, disse serem sinais de uma cegueira futura que se abaterá sobre os meus olhos. Brincadeira ou não, hoje apercebi-me que falava em cegueira, numa daquelas expressões populares em que referimos a cegueira, comofazer algo às cegas. Não foi esta a expressão, todavia. E oxalá à minha saúde que as minhas ousadias não clamem por castigo ou que nada do que antevejo venha a concretizar-se.
Para alguém, como eu, que conhece bem a obra mencionada, tais sinais até carecem de alguma solidez, assumindo que a cegueira que José Saramago refere não se trata de uma cegueira da própria visão, mas da consciência humana. Esta interpretação vem de um estudo e mesmo de alguma pesquisa que desenvolvi por precaução contra informações que eu pudesse prestar sem o mais completo rigor. A obra, em traços gerais se os mais não me são absolutamente permitidos, conta-nos do alastrar de uma epidemia macabra que faz toda a população de um sítio incógnito apanhar cegueira, deixando de ver senão um cenário plenamente branco defronte dos olhos. O primeiro indivíduo a cegar perde a visão durante a condução. Esse acaba por alastrar o mal a quem lhe roubará o carro, à esposa e, por exemplo, ao condutor do táxi que o levará a uma consulta de oftalmologia. O médico que o assiste, desconhecendo a origem daquela patologia nunca estudada por médico nenhum da sua praça, decide estudar toda aquela invulgaridade. Pouco tempo se dedica ao projecto: nas próximas horas há-de cegar, sendo enviado para um antigo hospital de psiquiatria, até então abandonado, que os responsáveis nacionais pela saúde elegem como lugar para onde enviar os portadores da nova doença contagiosa. Quando estão para levar o homem para a quarentena, sua mulher diz aos enfermeiros estar igualmente cega, sendo transportada de forma igual. O intento de mulher do médico é não se afastar do marido, mas a sua condição, a princípio ignorada pelos restantes infectados, fará com que esta mulher veja os comportamentos da raça humana pela sobrevivência, na miséria e indecência extremas. Esta mulher, cercada de cegos, acabará por nunca perder a visão, ajudando tantos quanto vai sendo da sua capacidade. Vão chegando mais e mais cegos; diariamente os guardas depositam à entrada do hospital os alimentos necessários ao sustento e manutenção daquelas vidas, que com dificuldade tentam adaptar-se às suas novas limitações. Certo dia, todos são vitimados por um plano maldito levado a cabo por um grupo de homens cegos: portador de uma arma de fogo, o chefe destes homens toma conta de todos os alimentos, sujeitando todos os outros cegos a determinado pagamento em troca de géneros alimentícios. Quando os objectos de valor, utilizados para o dito pagamento, se esgotam, os alimentos passam a ser entregues mediante outro preço: que as mulheres de todas as camaratas se dirijam, noite após noite, perto desses homens para que eles se sirvam delas desde o serão até de madrugada, chegando a matar algumas durante os actos obscenos. O horror que terminei de relatar tem termo quando um incêndio destrói tanto o hospital como grande parte dos infectados. Já havia deixado de haver guardas a vigiar o hospital: toda a população humana estava infectada, matando-se pela própria existência. A sociedade e a civilização, pela descontinuidade de apenas uma das suas bases, haviam cedido. Um grupo de cegos, auxiliado pela mulher do médico, possui as únicas possibilidades de se sagrar sobrevivente diante de tamanha desorganização de uma cidade fantasma, onde cegos persistem em tentar encontrar comida num supermercado há vários dias vazio. Cães alimentam-se de humanos mortos; a chuva limpa a rua de cadáveres; o Sol faz tudo feder. Com muito tempo passado, a humanidade deve limitar-se a pouco do que era antes, quantitativamente falando. O primeiro cego, sobrevivendo sempre junto da mulher do médico, recupera a visão. Pela devida ordem, todos verão de novo. Apenas a mulher do médico, agora não necessitando de olhar por si e pelos outros, se arrisca a tornar-se cega por fim.
A obra, tanto em livro como em filme, apela à consciência humana, à ajuda mútua, à cooperação, à sabedoria. A cegueira de toda a humanidade é a sua carência de valores de integridade, de bondade, como os humanos os conheceram há muitos séculos. O consumismo, o comodismo e o egoísmo são somente factores da cegueira de que sofre quase toda a espécie humana. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara é a expressão que sintetiza, segundo Saramago, a sua obra: afinal, quase sempre olhamos para os outros... mas quantas vezes reparamos neles efectivamente?
Uma diferença lógica entre livro e filme, e que adquire um interesse muito amplo, é o facto de o filme ser uma sucessão de imagens, enquanto um livro consiste num relato cujos leitores ou ouvintes devem imaginar o sucedido e que lhes é contado. No livro de José Saramago, esse conceito é utilizado e aproveitado até ao limite: um leitor não vê, apenas imagina a imagem que o narrador pretende desenhar: como numa cegueira verdadeira. Somos, assim, tornados também nós cegos, lendo uma obra sobre a nossa própria cegueira, seja ela de não ver imagens, seja ela de não ver a realidade factual. Num filme, tudo se altera, como sabemos. As imagens seguem-se uma à anteriormente exposta: e o público vai tomando contacto com os factos, assistindo a eles, observando-os. Não direi que o filme remove o conceito que Saramago criou, se mesmo este grande escritor não hesitou, profundamente comovido, em situar este filme do realizador brasileiro Fernando Meirelles na perfeição a que é possível um filme chegar. O realizador, e toda a parte técnica por detrás da gravação, deu atenção a todos os detalhes - a imagem do filme baseia-se no tom claro, ou mesmo no branco: as personagens têm, regra geral, pele muito clara, as paredes são brancas ou são de vidro, o carro do primeiro cego é branco, as armações das camas das camaratas são brancas, etc. Tal e qual a cegueira branca que nos conta José Saramago. Esta história é a essência de um dos livros mais vendidos e aclamados deste escritor maior. O filme, muito recente, ajudou claramente à persistência do sucesso que o livro sempre teve. A par com Memorial do Convento e OEvangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira é tido como a grande obra literária de José Saramago. Sempre soube, desde que me lembro, que surgiu, há imenso tempo, uma proposta de cedência de direitos de autor para a realização de um filme baseado na obra Memorial do Convento. Desconheço o que está por detrás tanto da proposta como da rejeição de Saramago; todavia, creio que este sabe bem de que forma se terá comprometido e penso que teve as suas razões para não deferir o pedido. Noutras ocasiões permitiu o uso dos seus conteúdos em obras de outras artes: como exemplo, este filme Ensaio sobre a cegueira ou a ópera italiana Blimunda, a partir de Memorial do Convento e que foi um enorme êxito no teatro Scala de Milão. Em certas pessoas podemos confiar os destinos da cultura e da literatura portuguesas, que eles saberão bem, ou muito bem, o que fazem.
Primeiro peço desculpa aos leitores pela ausência do meu artigo que deveria ser publicado no dia 2 de Maio.
Assim, hoje dou-vos dose dupla. Irei apresentar-vos o primeiro filme a cores e uma pequena biografia do autor.
Foi na década de 60 que surgiu o primeiro filme a cores em território nacional. O filme intitulava-se “Raça”, realizada a1961 por Augusto Fraga. Contudo foi o filme “Dom Roberto” que marcou a ruptura com o antigo cinema português.
“Dom Roberto”, de nome verdadeiro João Barbelas (Raul Solnado), um mendigo que exibe fantoches apaixona-se por Maria (Glicínia Martins), a qual também não teve um passado melhor. Vão ambos viver para uma casa que julgam ser dele. Contudo, o destino não é como se espera e voltam os dois para a rua da amargura. Mas mantêm a esperança e ternura.
Este filme estreou no Cinema Império, no dia 30 de Maio de 1962, e contou também com a participação de Nicolau Breyner e Rui Mendes. “Dom Roberto” foi ao Festival de Cannes em 1963 e recebeu a Menção Especial do Júri do Melhor Filme para a Juventude.
José Ernesto de Sousa foi o autor deste marco importante no cinema português.
Nasceu em 1921 e foi um homem dedicado às diversas artes, desde cinema, teatro, jornalismo, fotografia, rádio e crítica. Foi fundador do Cineclubista em Portugal e também o fundador, com Paulo Rocha, do Novo Cinema, ou seja do cinema a cores em Portugal.
Para além do filme “Dom Roberto” de 1962 realizou ainda outros filmes. “O Natal na Arte Portuguesa” ainda na década de 50 (1954); “Crianças Autistas”, 1969 e ainda “Cantigamente”, em 1974.
Em primeiro gostaria de justificar a minha ausência neste blog nas últimas duas semanas. As preparações para a tertúlia, as actividades extra-curriculares onde participo e outras situações aliadas ao esquecimento levaram a que nas últimas duas quartas-feiras não elaborasse artigos de blog.
O artigo de hoje demonstrará a vida e obra de António Charrua. O nome deste pintor alentejano surgiu quando estava a explorar o site do museu do neo-realismo e os artistas cujas obras já tinham sido expostas neste museu. António Charrua nasceu em 1925 e veio a falecer em Agosto do ano passado. O artista dedicou-se à pintura, escultura, gravura e cerâmica, evidenciando tendências expressionistas e abstractas. Frequentou o curso de Arquitectura na Escola De Belas-Artes em Lisboa, porém não o terminou. Expôs individualmente pela primeira vez no Porto em 1953 e no mesmo ano participou na VII Exposição Geral de Artes Plásticas que teve lugar na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA) em Lisboa.
António Charrua esteve ligado a vários grupos e associações como a Cooperativa de Gravadores Portugueses (a GRAVURA), aos “artistas resistentes” e aos Independentes. Em 1960 o pintor foi galardoado pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde actualmente está representado através das suas obras. Nos anos 60 as suas obras ganharam um grande carácter político, representando cenas políticas como a guerra colonial portuguesa e outras lutas internacionais como a guerra do Vietname.
Para além da Fundação Claouste Gulbenkian, as obras de António Charrua também estão representadas no Museu Nacional Soares dos Reis e no Museu de Helsínquia. As obras do pintor são apreciadas a nível internacional, mas a nível nacional este pintor não é reconhecido pelo grande público.
António Charrua foi um pintor extraordinário, singular e versátil que deixou-nos, a nós portugueses e ao mundo, uma obra original à qula devemos dar o merecido crédito
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"(...) o gesto é para mim decorrente da emergência da própria força do acaso que deverá ser assumida, embora nem sempre ele faça lei. Encontro-o tão exacto e irrepetível quanto a própria vida... como quando encontramos alguém no decorrer da existência. Há sempre uma timidez, uma supressão no humano. Nunca dizemos suficientemente as coisas essenciais às pessoas importantes, como por exemplo isto: amo-te." António Charrua
"A minha obra vejo-a como uma pesquisa numa zona marcada pelo gesto expressionista, mas determinada por um certo desejo de equilíbrio, uma certa contenção (...) Contrariamente ao que se possa supor, não se trata de começar no real, ou naquilo a que se chama natureza. Tudo se passa no plano da tela, e, recusada a ilusão, as coisas situam-se na continuidade do sentido estético, que o mesmo é dizer na própria obra de arte. Suponho que toda a pintura dita moderna apela a uma nova construção do espaço que tem a ver mais com o que se sabe do com o que se vê. Mas o real também está presente, na sua indeterminada, fascinante e misteriosa dimensão". António Charrua
Por hoje, assumindo já a minha posição diante de uma janela descoberta por onde vem entrando a luz clara da nossa estrela, o Sol nasceu com um brilho que nos tem aquecido a todos, propiciando uma excelente dose de boa disposição muito recorrente deste estado do tempo. Forças honrosas e virtuosas, mas implacáveis no rigor que exigem, forçam à minha posição nesta cadeira, confrontando a luz atrás de um vidro e percorrendo este teclado com estes mesmos dedos de sempre, ao invés de, como mais me agradaria, descer os poucos degraus que me unem ao exterior e balançar os passos por vários quarteirões a queimar-me sob o calor - com a devida moderação. E advém de um espírito que tento conservar apesar de quaisquer adversidades que espreitem - o espírito da satisfação corrente - que me acontece não poder, por razões de ordem moral, banhar-me de Sol e, ainda assim, admirar o que me envolve e deixar-me envolver sinceramente na fascinação do estado ideal de uma mente contente. Quantas vezes o juízo de me encontrar no completo usufruto da luz não faz justamente as vezes do efectivo passeio ao Sol? Ou quantas vezes julgar-me direito, lado a lado com o tronco de uma árvore esguia e farta de ramagens, não implica uma satisfação semelhante à que recolheria se, na verdade, lá estivesse?
Essa árvore poderia bem ser um castanheiro, uma videira, uma laranjeira... E todas as demais espécies que constam dos livros de botânica, que as classificam perante nós como tratando-se de um catálogo. O nome por que evocamos as diversas árvores pode, de acordo com uma reflexão que completei há alguns minutos, dar azo a algumas confusões e erros que escapam ao vulgo: afinal, uma videira é uma verdadeira videira porque dos seus ramos nascem as uvas. Falso. Nada mais falso. E, por consequência de não me identificar com as massas de gente que apontam males sem sugerir resoluções, passo à correcção de tão possível erro de todos nós. Com efeito, o fruto que daqueles ramos vemos nascer, ou sabemos que nasce se nos falta o conhecimento visual, é a uva pelo facto de se tratar aquela árvore de uma videira. A videira é a causa da qual resulta a uva. A uva é o efeito de ali estar uma videira. Nunca a consequência poderia ser a causa da própria causa, ou estaríamos a meditar acerca de casos muito singulares que não importam sobremaneira à questão fundamental que aqui apresento. Certo é, para todos que me lêem, que hoje deveria falar-vos de José Saramago e da sua obra romanesca, em sequência da sua biografia que escrevi já vai para uma semana. Mas que restem ilusões para outras ocasiões onde elas sejam mais válidas. Como homem de palavra, aqui trago a obra de Saramago, mas apenas construindo a ponte da qual apoiei já os fundamentos: da igual forma que a uva não faz a videira mas o oposto já se admite, também não é uma boa obra que faz que ali esteja um bom escritor, mas sim é verdadeiro que é um bom escritor aquele que escreve uma boa obra. A obra literária de José Saramago é, conscientemente o afirmo, fruto de uma mente de génio.
Hoje tratarei somente a sua obra em prosa, pela qual ele é o grande escritor reconhecido em tantas partes deste mundo. Sobre a sua obra poética, em particular, escreverei de hoje a duas semanas, enquanto a sua obra dramática foi já digna da minha consideração no artigo que do teatro português fez assunto. Em primeiro lugar, antes de muita mais informação que aqui será depositada para vosso próprio enriquecimento, penso ser útil separar as duas fases em que é possível dividir a obra romanesca do nosso escritor. Se pensarmos na fase, já mencionada na passada semana, em que José Saramago muito se dedicou à composição dramática e poética, damo-nos conta de que tal obra, no seu geral, é passível de sofrer uma divisão em três fases diversas. No entanto, visto que me refiro à produção de romances, encontramos apenas duas fases que merecem diferenciação. A primeira, entre 1980 e cerca de 1991, e a segunda dizendo respeito ao tempo decorrido entre o final da primeira fase e os tempos que correm. Curiosamente, os limites que aqui acabo de anunciar coincidem com a transferência de Saramago para a ilha de Lanzarote, nas Canárias, onde permanece residindo a quase tempo inteiro. Esta situação pode auxiliar-nos no entendimento de que um episódio de grande mudança numa vida pode induzir a profundas transformações no modo como a pessoa encara mesmo a sua função, a sua ocupação. Claro que num artista essas transformação são mais frequentes e menos calamitosas, uma vez que essas mudanças vão conduzir a alterações na sua obra, que só dele depende, e mesmo a vai tornar mais rica. O primeiro período temporal que determinei foi no qual Saramago definiu o seu estilo próprio, hoje tão conhecido e influente, e em que se dedicou em especial à redacção de romances históricos, enquadrando, sobre um pano de fundo histórico, uma junção saudável entre o realismo e a opinião pessoal sobre os acontecimentos e rumos da História. José Saramago deixa-se, tantas vezes, adicionar alguns ingredientes à própria História, contando-nos os factos de uma outra forma que nos conduza à leitura do passado com os olhos que ele nos está pedindo, do alto do seu raciocínio. Esta característica levou os ingleses a apelidar o estilo literário de Saramago como realismo mágico, textualmente traduzido da anglofonia. O que, no fundo, os aliados ingleses e americanos pretendem dizer acerca do nosso escritor é que este descreve-nos a realidade de um tempo já passado de uma forma pouco convencional e não tanto fielmente ilustrativa, mas em vez disso serve-se da sua vasta imaginação para, com ideias irreais que nos fogem à lembrança, nos fazer perceber melhor a História do que simplesmente enumerando os factos e os sucessos.
O romance Levantado do chão, de 1980, marca o início desta sua fase, em que cresceu e amadureceu como autor. Este romance é sempre apontado como o princípio do grande Saramago que hoje se nos apresenta atrás dos seus óculos ou atrás das capas, hoje amarelas vivas, dos seus livros. Foi ao iniciar este livro que José Saramago consolidou o seu estilo de escrita, que tem vindo a ser polémico mas que tantas vozes, grupo no qual insiro a minha, têm insistido em legitimar. É facto que José Saramago viola as regras de pontuação com que todos nós fomos educados, e mesmo eu, na minha algo ofensiva luta pelo rigor que algumas vezes sustento, manifestava-me contra a sua escrita antes de a conhecer. Hoje, com conhecimento de causa, idolatro o seu génio. O que Saramago faz, em cada um dos seus romances, é uma reinvenção da escrita e da pontuação, à base de vírgulas e pontos finais, ambos mais raros do que o suposto, como forma de retirar ao discurso as pausas que, muitas vezes, são causas para paragens nas leituras e que quebram o ritmo de toda a narração. Este seu método discursivo aproxima o autor de um contador de histórias da tradição oral, em que o que mais importa é o conteúdo e não tanto a forma com que ele se apresenta.
Romances bem demonstrativos desta sua primeira fase de ficção são Memorial do Convento, em que Saramago utiliza a maior obra de construção de Portugal para escrever a maior obra literária da nossa literatura das últimas décadas, em simultâneo que nos ilustra o país que tínhamos no século XVIII; O ano da morte de Ricardo Reis, em que o autor nos mostra a Lisboa de meados do século XX onde terá vivido e morrido o heterónimo pessoano no seu último ano de vida; A Jangada de Pedra, em que Saramago retrata o isolamento de Portugal e Espanha em relação à Europa através do afastamento físico da Península Ibérica, transformando-se esta numa ilha que navega livremente no Oceano Atlântico; e ainda O Evangelho segundo Jesus Cristo, a sua obra polémica por excelência, em que nos conta a vida de Jesus Cristo sob uma perspectiva humanizada - como uma pessoa normal, vítima dos desejos e erros de toda a gente comum. A censura aplicada a esta obra pelo deputado Sousa Lara aquando da candidatura de Saramago a um prémio literário a nível europeu terminou na saída do escritor de Portugal, indo a viver no país vizinho até aos dias de hoje.
O início da década de 90, dessa forma, criou um novo e diferente prosador. Os seus temas afastaram-se da História e centram-se sobre problemas e questões referentes ao ser humano no seu íntimo: as suas fragilidades e as suas forças. Os romances mais importantes desta fase são certamente Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte.
O inquérito que, por largos meses, conservei na coluna do lado deste blogue (Qual destes temas considera mais possível de sugerir uma obra-prima da literatura?), permitiu-me ter acesso à receptividade do público em geral em relação aos temas das obras de José Saramago. O largo número de votos facilitou-me a essa percepção, que veio definitivamente de encontro às minhas ambições iniciais, repartindo-se as escolhas da forma que eu pretendia: mais votos na categoria O poder e o dramatismo dos sonhos, número de votos semelhantes nas categorias O desvio abrupto e não anunciado das leis naturais que nos regem, A fragilidade total de algo tão complexo e forte como a civilização e a sociedade e ainda A capacidade de amar, de qualquer forma, o nada, e por fim, reduzido número de votos na categoria A verdadeira palavra de Jesus Cristo. Estes assuntos, em certa medida bem inteligentes para quem os leia, são as bases de muitos dos melhores romances do nosso grande prosador. Alguns deles são até o produto daquela reflexão que não somos acostumados a praticar antes da finalização da leitura. Como que desmistificando, declaro-me no dever de vos mencionar em que livros pensei na hora de definir as diferentes categorias do inquérito. O livro acerca da força dos sonhos e de toda a realidade onírica é Memorial do Convento, onde vemos todos os feitos alcançados por meio de uma vontade que se estabelece e manifesta de variadas formas. A obra que retrata o desvio das leis naturais com que vivemos são A Jangada de Pedra e As Intermitências da Morte, assim como também, se formos abertos à evidência que se achega pela semelhança dos temas, Ensaio sobre a cegueira. Este romance, inicialmente, eu via inserido no tema seguinte, sobre a fragilidade daquilo em que confiamos tudo: a sociedade. A capacidade de amar o nada, de praticar um amor sem um objecto, está patente no romance Todos os nomes. Por fim, com menor número de votos, e com um tema menos popular, O Evangelho segundo Jesus Cristo.
Em todas as artes de criação, não tanto nas de interpretação, o artista não pode ser considerado de menor qualidade e mestria por não possuir um aspecto denominado versatilidade. No entanto, a qualidade invulgar de Saramago torna-o eficazmente criador de literatura não só em prosa, mas igualmente em poesia. No próximo artigo dedicar-me-ei à exploração de uma obra de referência de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, realizando uma analogia entre o livro e o filme estreado nas salas de cinema no ano passado, do realizador Fernando Meirelles. Porém, de hoje a duas semanas, a minha atenção recairá sobre a poesia de José Saramago.