O que tenho hoje em mãos é tarefa bem complicada, uma exigência para a qual muitos esforços não bastam que nos guiem na direcção do prometido. Olhar José Saramago como um poeta, que é o que me propus hoje exemplificar, foi, noutros tempos, bem mais simples do que o é pelos dias de agora: em alguns anos, todas as suas palavras que nas livrarias iam surgindo com o sabor fresco da novidade limitavam-se a versos, poemas alinhados num contexto preciso ou pouco rigoroso. Após essa fase, como qualquer autor, este alterou o seu método, redigindo com maior frequência romances no seu registo prosaico bem reconhecido por todos. Esse mesmo registo foi o que lhe valeu a atribuição do mais alto prémio mundial que distingue intelectuais envolvidos nesta arte, ficando a poesia cada vez mais afastada do rosto que nos acostumámos a imaginar por trás dos trabalhos que lemos da sua autoria. Ao todo, Saramago publicou três livros de poesia, com um intervalo entre publicações variável entre quatro a cinco anos. Eles, ainda hoje vendidos como marcos do início de uma carreira sólida de artista moderno, receberam, da parte do escritor, os seguintes nomes: Os Poemas Possíveis, Provavelmente Alegria e O Ano de 1993, todos publicados oficialmente algures entre o final da década de sessenta e o início da década de setenta e lidos por muitos portugueses desde então ate hoje. Não estão, efectivamente, integradas no conjunto de algumas obras de José Saramago que consideremos, com base em determinadas vantagens qualitativas, as mais formidáveis, e os seus poemas apenas, sob uma análise quase inconsciente dos mesmos, com dificuldade farão algum leitor apreciar a escrita de Saramago, se não a apreciasse antes de contactar com esta poesia. Rectificando, pois assemelho-me a delinear pelo discurso que a poesia de Saramago não merece a sua alta consideração, que, por uma análise algo mais elaborada, devemos valorizar em grande medida esses poemas: eles foram o fruto de um génio literário que, com eles, amadureceu, e que necessitava amadurecer o bastante para alcançar a mestria que viria a obter como romancista. A poesia foi, com efeito, a alternativa que Saramago não temeu, quando o seu segundo romance foi redigido e rejeitado, e que permitiu a sua constância de publicações, nunca o afastando desta sua arte. A sua maturação como escritor passou muito pela racionalização da poesia.
Um influente poeta português da modernidade, Eugénio de Andrade, como possivelmente venha a contar-vos melhor no próximo artigo, declarou certo dia, após Saramago ser galardoado com o conhecido prémio Nobel, que esse reconhecimento seria mais justo de laurear um poeta e não um prosador. É bem certo que foram os seus romances, tão lidos e tão fascinantes, que sugeriram fortemente o seu nome para a sua sagração: esquecem, porém, os próprios colegas do mundo literário, que José Saramago, no início da sua carreira, compôs muita poesia, ainda que bem longe da qualidade que outros registaram nesse campo, como o próprio Andrade ou Miguel Torga, ou mesmo Sophia de Mello Breyner. Se, pelas palavras do poeta, a poesia parece ser a expressão máxima de todo o ser português, José Saramago evidencia-se como um aparatoso caso de distinção, que se desvia daquilo que é regra. Com a prosa, o nosso mestre, assim lhe chamemos, obteve o reconhecimento que nenhum romancista do século XX esteve próximo de conhecer.
Quem melhor me souber descrever segundo aquilo que habitualmente escrevo, mais em literatura do que propriamente nestes artigos com um certo carácter de jornalismo ou de crónica, talvez me reconheça uma inflexível tendência para o subjectivo dos assuntos, emitindo opiniões pessoais onde o discurso de reflexão não seria proposto pelo grosso dos autores. Compreenderia o teor dessa mensagem se ma viessem dirigir; contudo que a sensibilidade que deixo persistir no meu narrador se altera em cada nova situação com que se depara, e essa mesma sensibilidade difere bastante daquela com que vivo os dias enquanto ser humano, como existindo, num clima por vezes pouco harmonioso e tranquilo, duas personalidades distintas dentro deste mesmo corpo, uma delas apenas se manifestando nas circunstâncias de escritor e omitindo quase na totalidade este outro que é mais visível ao olhar de todos. Não sou, porém, insensato de julgar-me mestre em confrontação com a opinião que todos parecem ter e que aceito como elogios: no seguimento deste artigo, quero certificar-vos que a opinião pessoal que eu possa ter, não vo-la manifestarei. Seria absurdo tratar a poesia de José Saramago sem os devidos exemplos que pedem um breve comentário, e se esse comentário com dificuldade poderá sair isento de um toque pessoal, isenta poderá ser a escolha dos poemas de que falarei e que para aqui copiarei para vossa leitura. O primeiro que trago é o de abertura do livro Os Poemas Possíveis.
"Dirão outros, em verso, outras razões,
Quem sabe se mais úteis, mais urgentes.
Deste cá, não mudou a natureza,
Suspensa entre duas negações.
Agora, inventar arte e maneira
De juntar o acaso e a certeza,
Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes."
Este poema de duas estrofes e com esquema rimático consiste no conceito de literatura mantido pela consideração do autor: descreve o processo de criação literária como um processo onde a delicadeza dos excessos domina como um rei no meio de tantas outras condições fundamentais à concretização de um texto. O acto de escrever, somente este, simples ou exigente que seja, baseia-se no próprio vício de escrever e não sucede, neste autor e em muitos outros como eu próprio, de outras causas acima desta: um vício cruel ou soberbo, que outrem nos oferece em troca dos nossos mesmo resultados de participar neste jogo de criação, em que pouco se ganha. A comparação com que termina é a de quem rói as unhas, confrontação essa que eu entendo infelizmente bem, dado eu possuir ambos os vícios, e ainda que eu julgue uma dádiva de Deus saber escrever bem e com correcção, talvez, segundo diferentes perspectivas, esse acto seja tão miserável quanto o de roer as unhas; chega a surgir o problema para o qual parecemos ter sempre a resposta certa: poderá um vício ser bom? Não, dizemos sempre. Será?
"Caminhámos sobre as águas como deuses,
E fomos deuses.
Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram,
E os traços lá ficaram.
Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos:
Não são os nossos tectos."
Este outro poema de singular simplicidade e sinceridade é parte do livro Provavelmente Alegria, e descreve o passar do tempo sobre as sensações, os gestos e as emoções que duas pessoas podem experimentar. O facto sentimental que o poeta nos reporta não diz apenas respeito a dois amantes, mas igualmente a dois amigos ou a dois elementos da mesma família. A sensação é a de sermos absolutamente contentes num instante, não significando por isso que essa felicidade se prolongue através dos anos, ou mesmo que a felicidade do conhecimento e da experiência venha a demonstrar-se contentamento depois de passar o tempo. Os indivíduos, dos quais somos todos exemplo ilustrativo, alteram-se ao sabor das vivências e subjugam-se às diversas realidades que fazem os dias nem sempre se perceberem como uma sucessão perfeita de horas sobre horas, num ciclo invariável. Somos hoje, estamos hoje como estamos, porque nos rodeiam as condições para o sermos. Seremos amanhã diferentes de hoje porque também o dia é outro, com o fim do dia anterior sumiu-se a forma de se estar naquele dia e de se fazer o que se fez. Esta realidade mais se notará se considerarmos a possibilidade de a analisarmos com a diferença de meses ou anos de entremeio.
Um influente poeta português da modernidade, Eugénio de Andrade, como possivelmente venha a contar-vos melhor no próximo artigo, declarou certo dia, após Saramago ser galardoado com o conhecido prémio Nobel, que esse reconhecimento seria mais justo de laurear um poeta e não um prosador. É bem certo que foram os seus romances, tão lidos e tão fascinantes, que sugeriram fortemente o seu nome para a sua sagração: esquecem, porém, os próprios colegas do mundo literário, que José Saramago, no início da sua carreira, compôs muita poesia, ainda que bem longe da qualidade que outros registaram nesse campo, como o próprio Andrade ou Miguel Torga, ou mesmo Sophia de Mello Breyner. Se, pelas palavras do poeta, a poesia parece ser a expressão máxima de todo o ser português, José Saramago evidencia-se como um aparatoso caso de distinção, que se desvia daquilo que é regra. Com a prosa, o nosso mestre, assim lhe chamemos, obteve o reconhecimento que nenhum romancista do século XX esteve próximo de conhecer.
Quem melhor me souber descrever segundo aquilo que habitualmente escrevo, mais em literatura do que propriamente nestes artigos com um certo carácter de jornalismo ou de crónica, talvez me reconheça uma inflexível tendência para o subjectivo dos assuntos, emitindo opiniões pessoais onde o discurso de reflexão não seria proposto pelo grosso dos autores. Compreenderia o teor dessa mensagem se ma viessem dirigir; contudo que a sensibilidade que deixo persistir no meu narrador se altera em cada nova situação com que se depara, e essa mesma sensibilidade difere bastante daquela com que vivo os dias enquanto ser humano, como existindo, num clima por vezes pouco harmonioso e tranquilo, duas personalidades distintas dentro deste mesmo corpo, uma delas apenas se manifestando nas circunstâncias de escritor e omitindo quase na totalidade este outro que é mais visível ao olhar de todos. Não sou, porém, insensato de julgar-me mestre em confrontação com a opinião que todos parecem ter e que aceito como elogios: no seguimento deste artigo, quero certificar-vos que a opinião pessoal que eu possa ter, não vo-la manifestarei. Seria absurdo tratar a poesia de José Saramago sem os devidos exemplos que pedem um breve comentário, e se esse comentário com dificuldade poderá sair isento de um toque pessoal, isenta poderá ser a escolha dos poemas de que falarei e que para aqui copiarei para vossa leitura. O primeiro que trago é o de abertura do livro Os Poemas Possíveis.
"Dirão outros, em verso, outras razões,
Quem sabe se mais úteis, mais urgentes.
Deste cá, não mudou a natureza,
Suspensa entre duas negações.
Agora, inventar arte e maneira
De juntar o acaso e a certeza,
Leve nisso, ou não leve, a vida inteira.
Assim como quem rói as unhas rentes."
Este poema de duas estrofes e com esquema rimático consiste no conceito de literatura mantido pela consideração do autor: descreve o processo de criação literária como um processo onde a delicadeza dos excessos domina como um rei no meio de tantas outras condições fundamentais à concretização de um texto. O acto de escrever, somente este, simples ou exigente que seja, baseia-se no próprio vício de escrever e não sucede, neste autor e em muitos outros como eu próprio, de outras causas acima desta: um vício cruel ou soberbo, que outrem nos oferece em troca dos nossos mesmo resultados de participar neste jogo de criação, em que pouco se ganha. A comparação com que termina é a de quem rói as unhas, confrontação essa que eu entendo infelizmente bem, dado eu possuir ambos os vícios, e ainda que eu julgue uma dádiva de Deus saber escrever bem e com correcção, talvez, segundo diferentes perspectivas, esse acto seja tão miserável quanto o de roer as unhas; chega a surgir o problema para o qual parecemos ter sempre a resposta certa: poderá um vício ser bom? Não, dizemos sempre. Será?
"Caminhámos sobre as águas como deuses,
E fomos deuses.
Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram,
E os traços lá ficaram.
Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos:
Não são os nossos tectos."
Este outro poema de singular simplicidade e sinceridade é parte do livro Provavelmente Alegria, e descreve o passar do tempo sobre as sensações, os gestos e as emoções que duas pessoas podem experimentar. O facto sentimental que o poeta nos reporta não diz apenas respeito a dois amantes, mas igualmente a dois amigos ou a dois elementos da mesma família. A sensação é a de sermos absolutamente contentes num instante, não significando por isso que essa felicidade se prolongue através dos anos, ou mesmo que a felicidade do conhecimento e da experiência venha a demonstrar-se contentamento depois de passar o tempo. Os indivíduos, dos quais somos todos exemplo ilustrativo, alteram-se ao sabor das vivências e subjugam-se às diversas realidades que fazem os dias nem sempre se perceberem como uma sucessão perfeita de horas sobre horas, num ciclo invariável. Somos hoje, estamos hoje como estamos, porque nos rodeiam as condições para o sermos. Seremos amanhã diferentes de hoje porque também o dia é outro, com o fim do dia anterior sumiu-se a forma de se estar naquele dia e de se fazer o que se fez. Esta realidade mais se notará se considerarmos a possibilidade de a analisarmos com a diferença de meses ou anos de entremeio.
Aqui vos trouxe parte da poesia do nosso querido escritor. Recomendo vivamente a todos os interessados que leiam alguns poemas e alguns versos de Saramago: é interessante verificar que a construção frásica que tanto ligamos à sua escrita não se limita a surgir em romances ou em prosa, mas também noutros géneros literários. Por fim, em gesto de conclusão, deixo-vos com um derradeiro poema. Fala do amor e da força de uma ou duas pessoas. Lanço-vos o desafio, do qual deverão depreender uma conclusão através de uma mensagem subliminar: leiam esse poema como dirigido a vós em todas as circunstâncias da vida, não só no amor, mas também nos projectos de realização pessoal, na família e no modo de encarar a sucessão dos dias de que tenho vindo a falar como repetição constante. Perdoem-me.
"Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.
Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende."
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