segunda-feira, maio 4

Literatura: Falemos de árvores e de frutos

Por hoje, assumindo já a minha posição diante de uma janela descoberta por onde vem entrando a luz clara da nossa estrela, o Sol nasceu com um brilho que nos tem aquecido a todos, propiciando uma excelente dose de boa disposição muito recorrente deste estado do tempo. Forças honrosas e virtuosas, mas implacáveis no rigor que exigem, forçam à minha posição nesta cadeira, confrontando a luz atrás de um vidro e percorrendo este teclado com estes mesmos dedos de sempre, ao invés de, como mais me agradaria, descer os poucos degraus que me unem ao exterior e balançar os passos por vários quarteirões a queimar-me sob o calor - com a devida moderação. E advém de um espírito que tento conservar apesar de quaisquer adversidades que espreitem - o espírito da satisfação corrente - que me acontece não poder, por razões de ordem moral, banhar-me de Sol e, ainda assim, admirar o que me envolve e deixar-me envolver sinceramente na fascinação do estado ideal de uma mente contente. Quantas vezes o juízo de me encontrar no completo usufruto da luz não faz justamente as vezes do efectivo passeio ao Sol? Ou quantas vezes julgar-me direito, lado a lado com o tronco de uma árvore esguia e farta de ramagens, não implica uma satisfação semelhante à que recolheria se, na verdade, lá estivesse?

Essa árvore poderia bem ser um castanheiro, uma videira, uma laranjeira... E todas as demais espécies que constam dos livros de botânica, que as classificam perante nós como tratando-se de um catálogo. O nome por que evocamos as diversas árvores pode, de acordo com uma reflexão que completei há alguns minutos, dar azo a algumas confusões e erros que escapam ao vulgo: afinal, uma videira é uma verdadeira videira porque dos seus ramos nascem as uvas. Falso. Nada mais falso. E, por consequência de não me identificar com as massas de gente que apontam males sem sugerir resoluções, passo à correcção de tão possível erro de todos nós. Com efeito, o fruto que daqueles ramos vemos nascer, ou sabemos que nasce se nos falta o conhecimento visual, é a uva pelo facto de se tratar aquela árvore de uma videira. A videira é a causa da qual resulta a uva. A uva é o efeito de ali estar uma videira. Nunca a consequência poderia ser a causa da própria causa, ou estaríamos a meditar acerca de casos muito singulares que não importam sobremaneira à questão fundamental que aqui apresento. Certo é, para todos que me lêem, que hoje deveria falar-vos de José Saramago e da sua obra romanesca, em sequência da sua biografia que escrevi já vai para uma semana. Mas que restem ilusões para outras ocasiões onde elas sejam mais válidas. Como homem de palavra, aqui trago a obra de Saramago, mas apenas construindo a ponte da qual apoiei já os fundamentos: da igual forma que a uva não faz a videira mas o oposto já se admite, também não é uma boa obra que faz que ali esteja um bom escritor, mas sim é verdadeiro que é um bom escritor aquele que escreve uma boa obra. A obra literária de José Saramago é, conscientemente o afirmo, fruto de uma mente de génio.

Hoje tratarei somente a sua obra em prosa, pela qual ele é o grande escritor reconhecido em tantas partes deste mundo. Sobre a sua obra poética, em particular, escreverei de hoje a duas semanas, enquanto a sua obra dramática foi já digna da minha consideração no artigo que do teatro português fez assunto. Em primeiro lugar, antes de muita mais informação que aqui será depositada para vosso próprio enriquecimento, penso ser útil separar as duas fases em que é possível dividir a obra romanesca do nosso escritor. Se pensarmos na fase, já mencionada na passada semana, em que José Saramago muito se dedicou à composição dramática e poética, damo-nos conta de que tal obra, no seu geral, é passível de sofrer uma divisão em três fases diversas. No entanto, visto que me refiro à produção de romances, encontramos apenas duas fases que merecem diferenciação. A primeira, entre 1980 e cerca de 1991, e a segunda dizendo respeito ao tempo decorrido entre o final da primeira fase e os tempos que correm. Curiosamente, os limites que aqui acabo de anunciar coincidem com a transferência de Saramago para a ilha de Lanzarote, nas Canárias, onde permanece residindo a quase tempo inteiro. Esta situação pode auxiliar-nos no entendimento de que um episódio de grande mudança numa vida pode induzir a profundas transformações no modo como a pessoa encara mesmo a sua função, a sua ocupação. Claro que num artista essas transformação são mais frequentes e menos calamitosas, uma vez que essas mudanças vão conduzir a alterações na sua obra, que só dele depende, e mesmo a vai tornar mais rica. O primeiro período temporal que determinei foi no qual Saramago definiu o seu estilo próprio, hoje tão conhecido e influente, e em que se dedicou em especial à redacção de romances históricos, enquadrando, sobre um pano de fundo histórico, uma junção saudável entre o realismo e a opinião pessoal sobre os acontecimentos e rumos da História. José Saramago deixa-se, tantas vezes, adicionar alguns ingredientes à própria História, contando-nos os factos de uma outra forma que nos conduza à leitura do passado com os olhos que ele nos está pedindo, do alto do seu raciocínio. Esta característica levou os ingleses a apelidar o estilo literário de Saramago como realismo mágico, textualmente traduzido da anglofonia. O que, no fundo, os aliados ingleses e americanos pretendem dizer acerca do nosso escritor é que este descreve-nos a realidade de um tempo já passado de uma forma pouco convencional e não tanto fielmente ilustrativa, mas em vez disso serve-se da sua vasta imaginação para, com ideias irreais que nos fogem à lembrança, nos fazer perceber melhor a História do que simplesmente enumerando os factos e os sucessos.

O romance Levantado do chão, de 1980, marca o início desta sua fase, em que cresceu e amadureceu como autor. Este romance é sempre apontado como o princípio do grande Saramago que hoje se nos apresenta atrás dos seus óculos ou atrás das capas, hoje amarelas vivas, dos seus livros. Foi ao iniciar este livro que José Saramago consolidou o seu estilo de escrita, que tem vindo a ser polémico mas que tantas vozes, grupo no qual insiro a minha, têm insistido em legitimar. É facto que José Saramago viola as regras de pontuação com que todos nós fomos educados, e mesmo eu, na minha algo ofensiva luta pelo rigor que algumas vezes sustento, manifestava-me contra a sua escrita antes de a conhecer. Hoje, com conhecimento de causa, idolatro o seu génio. O que Saramago faz, em cada um dos seus romances, é uma reinvenção da escrita e da pontuação, à base de vírgulas e pontos finais, ambos mais raros do que o suposto, como forma de retirar ao discurso as pausas que, muitas vezes, são causas para paragens nas leituras e que quebram o ritmo de toda a narração. Este seu método discursivo aproxima o autor de um contador de histórias da tradição oral, em que o que mais importa é o conteúdo e não tanto a forma com que ele se apresenta.

Romances bem demonstrativos desta sua primeira fase de ficção são Memorial do Convento, em que Saramago utiliza a maior obra de construção de Portugal para escrever a maior obra literária da nossa literatura das últimas décadas, em simultâneo que nos ilustra o país que tínhamos no século XVIII; O ano da morte de Ricardo Reis, em que o autor nos mostra a Lisboa de meados do século XX onde terá vivido e morrido o heterónimo pessoano no seu último ano de vida; A Jangada de Pedra, em que Saramago retrata o isolamento de Portugal e Espanha em relação à Europa através do afastamento físico da Península Ibérica, transformando-se esta numa ilha que navega livremente no Oceano Atlântico; e ainda O Evangelho segundo Jesus Cristo, a sua obra polémica por excelência, em que nos conta a vida de Jesus Cristo sob uma perspectiva humanizada - como uma pessoa normal, vítima dos desejos e erros de toda a gente comum. A censura aplicada a esta obra pelo deputado Sousa Lara aquando da candidatura de Saramago a um prémio literário a nível europeu terminou na saída do escritor de Portugal, indo a viver no país vizinho até aos dias de hoje.

O início da década de 90, dessa forma, criou um novo e diferente prosador. Os seus temas afastaram-se da História e centram-se sobre problemas e questões referentes ao ser humano no seu íntimo: as suas fragilidades e as suas forças. Os romances mais importantes desta fase são certamente Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte.
O inquérito que, por largos meses, conservei na coluna do lado deste blogue (Qual destes temas considera mais possível de sugerir uma obra-prima da literatura?), permitiu-me ter acesso à receptividade do público em geral em relação aos temas das obras de José Saramago. O largo número de votos facilitou-me a essa percepção, que veio definitivamente de encontro às minhas ambições iniciais, repartindo-se as escolhas da forma que eu pretendia: mais votos na categoria O poder e o dramatismo dos sonhos, número de votos semelhantes nas categorias O desvio abrupto e não anunciado das leis naturais que nos regem, A fragilidade total de algo tão complexo e forte como a civilização e a sociedade e ainda A capacidade de amar, de qualquer forma, o nada, e por fim, reduzido número de votos na categoria A verdadeira palavra de Jesus Cristo. Estes assuntos, em certa medida bem inteligentes para quem os leia, são as bases de muitos dos melhores romances do nosso grande prosador. Alguns deles são até o produto daquela reflexão que não somos acostumados a praticar antes da finalização da leitura. Como que desmistificando, declaro-me no dever de vos mencionar em que livros pensei na hora de definir as diferentes categorias do inquérito. O livro acerca da força dos sonhos e de toda a realidade onírica é Memorial do Convento, onde vemos todos os feitos alcançados por meio de uma vontade que se estabelece e manifesta de variadas formas. A obra que retrata o desvio das leis naturais com que vivemos são A Jangada de Pedra e As Intermitências da Morte, assim como também, se formos abertos à evidência que se achega pela semelhança dos temas, Ensaio sobre a cegueira. Este romance, inicialmente, eu via inserido no tema seguinte, sobre a fragilidade daquilo em que confiamos tudo: a sociedade. A capacidade de amar o nada, de praticar um amor sem um objecto, está patente no romance Todos os nomes. Por fim, com menor número de votos, e com um tema menos popular, O Evangelho segundo Jesus Cristo.

Em todas as artes de criação, não tanto nas de interpretação, o artista não pode ser considerado de menor qualidade e mestria por não possuir um aspecto denominado versatilidade. No entanto, a qualidade invulgar de Saramago torna-o eficazmente criador de literatura não só em prosa, mas igualmente em poesia. No próximo artigo dedicar-me-ei à exploração de uma obra de referência de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, realizando uma analogia entre o livro e o filme estreado nas salas de cinema no ano passado, do realizador Fernando Meirelles. Porém, de hoje a duas semanas, a minha atenção recairá sobre a poesia de José Saramago.

Muito boa semana a todos!

1 comentário:

Anónimo disse...

mais 1 vez um agradável texto que prima pela sua linguagem tão semelhante à linguagem que usa sobre quem o texto fala. =)

adoro Saramago, 1 génio sem dúvida!
romances cerebrais são com ele.

gosto muito da forma comoe screves aqui, porque além de aproximares o teu estilo ao de Saramago, também escreves de forma a que se o blog fosse só teu, eu le-lo-ia (ñ todo hoje claro..sabes que sou 1 pessoas ocupada..) nao seria ''oh mais 1 blog, adeus!'', nao, poria nos meus favoritos! (por acaso este esta nos facvoritos)

1 enorme beijo para todos, muito sucesso para este vosso projecto, muitas Desfolhadas que a avó do Isac passou a gostar e 1 pedaço de carinho para ti Joao, parte da minha alma. =) (ai que romantica wue eu estou..mas é sincero e tu sabes!**)