O nome que atribuo a este artigo de hoje pouco diz respeito ao seu fundamento teórico, antes se insinua em relação a uma gama de sinais do Além que tenho recebido na minha intimidade e que escolho expressar ao geral de público, como se tivessem muito poder de destruição se ficassem como segredos meus, mas fossem inofensivos sinais se o seu risco se dissipar por muitas almas. Diz, assim, mais respeito a um desabafo que muitos considerarão de bom humor, e que por noção de estética e muitas outras que o tempo me fez adquirir no conjunto das demais, pretendo que construa o início imediato deste artigo que me apraz divulgar-vos. Passam já certos anos, mais longos que os dias se estes se isolam na conjuntura que se forma em nós pensantes, desde que me dei perante um teste de personalidade que, de uma forma genérica, não resultou em novidade alguma para o meu conhecimento de mim mesmo: somente teceu sobre mim uma consideração que logo compreendi ser verídica. Nela se dizia que as minhas horas de maior actividade são as que se dão enquanto os outros dormem, e eu insisto em não fechar os olhos. Durante todo o tempo que tem passado, essa situação, que sempre reconheci como acertada tendo em conta o que nitidamente entendo de mim próprio, apenas se tem afirmado consistentemente em ocasiões muito singulares, como por exemplo a frequência de dias em que durmo a sesta ou passeio e vagueio durante a tarde, para trabalhar e esforçar-me até altas horas do serão e da madrugada, quando já todos repousam de um dia cheio, o qual passou por mim de uma forma dissonante. Contudo, descobri há coisa de semanas, ou mesmo meses, que o teste podia estar a avisar-me de que um grande prazer, então escondido ante a máscara da improbabilidade, esperava a minha atenção: encontrei muita satisfação quando um dia, todos já deitados e alguns roncando durante o seu sono, cheguei com a ideia de não me deitar também eu, mas antes disso ver um filme, apreciá-lo na paz enorme que o silêncio e o escuro conseguem conceder aos seus apaixonados. Em mim, a noite tem a forma de singela tentação; mesmo que a minha actividade venha a significar que me sirvo menos do sono para o repouso pessoal, o prolongar dos trabalhos ou do lazer pela noite fora têm-me mostrado uma nova maneira de viver os dias, e como eles podem ser bem maiores do que julgamos. O dia tem, efectivamente, vinte e quatro horas, às quais se seguem outras vinte e quatro horas; para as comuns das pessoas, o dia tem dezasseis horas, porque o sono de oito horas diárias é nelas uma certeza inabalável e inviolável. Ora, no meu entendimento da questão, o sono insere-se na altura em que preciso dele, seja de tarde, seja de noite.
Todo este horror de linhas escritas para vos contar que há dois dias vi um filme, que adquiri nas férias da Páscoa passadas, sozinho, no calor do meu leito. O que me fez preferir esse filme e preterir as outras hipóteses foi a magnífica actuação do meu actor de eleição, Al Pacino, que nos leva para além do imaginável trabalho do melhor actor em que pensemos. O tema do filme, contudo, pouco ou nada interferiu na escolha a que procedi: aborda, através da personagem que Pacino interpreta com mestria, a cegueira. Esquecia-me eu, nesse tempo, que no dia seguinte, ontem, veria, na companhia de dois íntimos amigos, o filme Ensaio sobre a cegueira, a partir do romance de José Saramago. Ao início jogando com a situação, disse serem sinais de uma cegueira futura que se abaterá sobre os meus olhos. Brincadeira ou não, hoje apercebi-me que falava em cegueira, numa daquelas expressões populares em que referimos a cegueira, como fazer algo às cegas. Não foi esta a expressão, todavia. E oxalá à minha saúde que as minhas ousadias não clamem por castigo ou que nada do que antevejo venha a concretizar-se.
Para alguém, como eu, que conhece bem a obra mencionada, tais sinais até carecem de alguma solidez, assumindo que a cegueira que José Saramago refere não se trata de uma cegueira da própria visão, mas da consciência humana. Esta interpretação vem de um estudo e mesmo de alguma pesquisa que desenvolvi por precaução contra informações que eu pudesse prestar sem o mais completo rigor. A obra, em traços gerais se os mais não me são absolutamente permitidos, conta-nos do alastrar de uma epidemia macabra que faz toda a população de um sítio incógnito apanhar cegueira, deixando de ver senão um cenário plenamente branco defronte dos olhos. O primeiro indivíduo a cegar perde a visão durante a condução. Esse acaba por alastrar o mal a quem lhe roubará o carro, à esposa e, por exemplo, ao condutor do táxi que o levará a uma consulta de oftalmologia. O médico que o assiste, desconhecendo a origem daquela patologia nunca estudada por médico nenhum da sua praça, decide estudar toda aquela invulgaridade. Pouco tempo se dedica ao projecto: nas próximas horas há-de cegar, sendo enviado para um antigo hospital de psiquiatria, até então abandonado, que os responsáveis nacionais pela saúde elegem como lugar para onde enviar os portadores da nova doença contagiosa. Quando estão para levar o homem para a quarentena, sua mulher diz aos enfermeiros estar igualmente cega, sendo transportada de forma igual. O intento de mulher do médico é não se afastar do marido, mas a sua condição, a princípio ignorada pelos restantes infectados, fará com que esta mulher veja os comportamentos da raça humana pela sobrevivência, na miséria e indecência extremas. Esta mulher, cercada de cegos, acabará por nunca perder a visão, ajudando tantos quanto vai sendo da sua capacidade. Vão chegando mais e mais cegos; diariamente os guardas depositam à entrada do hospital os alimentos necessários ao sustento e manutenção daquelas vidas, que com dificuldade tentam adaptar-se às suas novas limitações. Certo dia, todos são vitimados por um plano maldito levado a cabo por um grupo de homens cegos: portador de uma arma de fogo, o chefe destes homens toma conta de todos os alimentos, sujeitando todos os outros cegos a determinado pagamento em troca de géneros alimentícios. Quando os objectos de valor, utilizados para o dito pagamento, se esgotam, os alimentos passam a ser entregues mediante outro preço: que as mulheres de todas as camaratas se dirijam, noite após noite, perto desses homens para que eles se sirvam delas desde o serão até de madrugada, chegando a matar algumas durante os actos obscenos. O horror que terminei de relatar tem termo quando um incêndio destrói tanto o hospital como grande parte dos infectados. Já havia deixado de haver guardas a vigiar o hospital: toda a população humana estava infectada, matando-se pela própria existência. A sociedade e a civilização, pela descontinuidade de apenas uma das suas bases, haviam cedido. Um grupo de cegos, auxiliado pela mulher do médico, possui as únicas possibilidades de se sagrar sobrevivente diante de tamanha desorganização de uma cidade fantasma, onde cegos persistem em tentar encontrar comida num supermercado há vários dias vazio. Cães alimentam-se de humanos mortos; a chuva limpa a rua de cadáveres; o Sol faz tudo feder. Com muito tempo passado, a humanidade deve limitar-se a pouco do que era antes, quantitativamente falando. O primeiro cego, sobrevivendo sempre junto da mulher do médico, recupera a visão. Pela devida ordem, todos verão de novo. Apenas a mulher do médico, agora não necessitando de olhar por si e pelos outros, se arrisca a tornar-se cega por fim.
A obra, tanto em livro como em filme, apela à consciência humana, à ajuda mútua, à cooperação, à sabedoria. A cegueira de toda a humanidade é a sua carência de valores de integridade, de bondade, como os humanos os conheceram há muitos séculos. O consumismo, o comodismo e o egoísmo são somente factores da cegueira de que sofre quase toda a espécie humana. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara é a expressão que sintetiza, segundo Saramago, a sua obra: afinal, quase sempre olhamos para os outros... mas quantas vezes reparamos neles efectivamente?
Uma diferença lógica entre livro e filme, e que adquire um interesse muito amplo, é o facto de o filme ser uma sucessão de imagens, enquanto um livro consiste num relato cujos leitores ou ouvintes devem imaginar o sucedido e que lhes é contado. No livro de José Saramago, esse conceito é utilizado e aproveitado até ao limite: um leitor não vê, apenas imagina a imagem que o narrador pretende desenhar: como numa cegueira verdadeira. Somos, assim, tornados também nós cegos, lendo uma obra sobre a nossa própria cegueira, seja ela de não ver imagens, seja ela de não ver a realidade factual. Num filme, tudo se altera, como sabemos. As imagens seguem-se uma à anteriormente exposta: e o público vai tomando contacto com os factos, assistindo a eles, observando-os. Não direi que o filme remove o conceito que Saramago criou, se mesmo este grande escritor não hesitou, profundamente comovido, em situar este filme do realizador brasileiro Fernando Meirelles na perfeição a que é possível um filme chegar. O realizador, e toda a parte técnica por detrás da gravação, deu atenção a todos os detalhes - a imagem do filme baseia-se no tom claro, ou mesmo no branco: as personagens têm, regra geral, pele muito clara, as paredes são brancas ou são de vidro, o carro do primeiro cego é branco, as armações das camas das camaratas são brancas, etc. Tal e qual a cegueira branca que nos conta José Saramago. Esta história é a essência de um dos livros mais vendidos e aclamados deste escritor maior. O filme, muito recente, ajudou claramente à persistência do sucesso que o livro sempre teve. A par com Memorial do Convento e O Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira é tido como a grande obra literária de José Saramago. Sempre soube, desde que me lembro, que surgiu, há imenso tempo, uma proposta de cedência de direitos de autor para a realização de um filme baseado na obra Memorial do Convento. Desconheço o que está por detrás tanto da proposta como da rejeição de Saramago; todavia, creio que este sabe bem de que forma se terá comprometido e penso que teve as suas razões para não deferir o pedido. Noutras ocasiões permitiu o uso dos seus conteúdos em obras de outras artes: como exemplo, este filme Ensaio sobre a cegueira ou a ópera italiana Blimunda, a partir de Memorial do Convento e que foi um enorme êxito no teatro Scala de Milão. Em certas pessoas podemos confiar os destinos da cultura e da literatura portuguesas, que eles saberão bem, ou muito bem, o que fazem.
1 comentário:
Este artigo li-o eu, enquanto apreciava o meu nutritivo, mas não muito agradável jantar. Confesso que sorri após ler toda a justificação de ficares acordado de noite a ver filmes, esse teu passatempo tão novo, mas que já havia notado bem que te agradava. Sabes que eu sou como a Cinderela, só que eu não perco o sapato, nem a magia à meia noite, perco o juízo, se é que o tenho quando a luz do Sol está acesa. No entanto, aprovo agradavelmente essa tua actividade de continuação do dia, que se eu não fosse sonolento po natureza, tomava como exemplo para mim. Mas pronto, esta foi a parte inicial, que me deixou logo bem-disposto.
Quanto aos teus desabafos, sabes o que acho dos sinais...a Sofia Alves vai aparecer hoje a cantar Andrea Bocelli...ou vais ouvir uma música vinda de Paris, chamada "Stars are blind"...algo acontecerá! BUH!! tolo ahahah
A obra é muito linda, o que vi em filme fez-me adorá-la, e o que ouvi lido por ti fez-me rir e chocar. Um óptimo começo, portanto.
Gostei de saber da curiosidade que dizia respeito à ópera "Blimunda". Só por causa disso, vou a Milão no Verão, para ver a mulher que vê demais em ópera.
Parabéns pelo artigo.
Os meus não tardarão, prometo-vos colegas =)
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