segunda-feira, maio 25

Literatura: Mérito consagrado

Parte integrante do processo evolutivo da vida de cada um, os momentos de grande concretização figuram entre todos os que já vivemos, adquirindo sempre, de imediato ou a um médio prazo, uma qualidade de motivação para tudo que venhamos a desenvolver com o nosso próprio esforço. O processo de consumação de todos os sucessos é, em primeiro, o acto de semear, depois o esforço contínuo que se realiza e desenvolve, depois o suor que resulta e, como última etapa, encontramos o efeito abonatório do mérito. Em muito do que é produzido falta a finalização da derradeira etapa que acabei de referir, o que, por ordem humana e de haver já testemunhado em mim semelhante injustiça, lastimo que perdure numa sociedade que é tida, pelos mais favoráveis à vida que ela propõe, como uma sociedade de esforço e mérito que, unidos, elevarão a honra de um sujeito. Todo este ideal ainda nos fascina, e é bem verdade que tudo aquilo que de nós exige o fascínio, o exige particularmente por ser algo ainda pouco visto: uma novidade a que, por vezes, aderimos com algumas reservas de início. Assistir à consagração efectiva e meritória de um longo trabalho em qualquer que seja a área, seja cultura, seja economia ou justiça, e mais áreas existirão, é algo com que dificilmente nos deparamos no quotidiano que vivenciamos e vamos vivenciando. Desta forma, o trabalho de muitos indivíduos resultará apenas no cansaço e no consequente desânimo de tarefa que não recompensou o esforço empreendido para o efeito. E, apenas para demonstrar com perfeita exactidão um dos horrores do mundo que nos integra, os poucos triunfos que um trabalhador alcança são, no grosso das vezes, alvo das piores críticas que não provirão senão de um sentimento repulsivo: a inveja.

Não esqueçamos que me refiro a José Saramago, o qual é digno de todas as condecorações que já possui e que foi coleccionando no decurso dos anos em que produziu tantos e tantos objectos de cultura. Neste caso específico, não em casos isolados que estejam a este alheios, o factor temeroso (a inveja), e conservador, teve um papel preponderante na opinião de muitas personalidades que expressaram o seu juízo relativamente à mais alta consagração que José Saramago obteve, que corresponde igualmente à condecoração de mais alto valor já atribuída a um escritor português: o Prémio Nobel da Literatura, no ano de 1998. No conjunto dos vultos portugueses socialmente reconhecidos que se expressaram acerca da atribuição do Nobel, encontramos três graus de aceitação da decisão da Academia Sueca. Em primeiro lugar damos com o conjunto de indivíduos que aplaudem, se necessário de pé, a dita decisão que premeia o escritor José Saramago. Em segundo lugar, encontramos os cépticos que, apesar de se mostrarem satisfeitos com o prémio, expressam sérias reservas em relação à decisão. Por último, há ainda aqueles que discordam com a escolha.

No primeiro conjunto de individualidades de grande simpatia descobrimos o Presidente da República de então, Jorge Sampaio, assim como o Primeiro-Ministro António Guterres (hoje entregue a preocupações muito distintas com pessoas que, em oposição a José Saramago, não saberão, muitas delas, ler ou escrever), ministros e outros políticos, como Manuel Maria Carrilho, Mário Soares ou Carlos Carvalhas, o bispo timorense D. Ximenes Belo, o rei de Espanha, e ainda, por exemplo, membros da Associação Portuguesa de Escritores. Todos estes, sem reservas algumas, mostraram o seu contentamento perante a atribuição do primeiro Nobel da Literatura da língua portuguesa, e até agora único. Este entusiasmo foi a todos inesperado: o secretismo da Academia Sueca impede qualquer pessoa de considerar que tal nome de tal autor estará dentro da discussão para vencedor ou se nem sequer se apresenta como candidato. Até à data em questão, e mesmo até aos dias de hoje, os Prémios Nobel da Literatura são de uma justiça muito questionável, tendo em consideração as próprias pessoas com poderes de decisão na escolha dos vencedores. Como exemplo, os vencedores de anos anteriores poderão influenciar directamente as decisões do presente: isso permite que um país, quantos mais prémios possuir, mais possuirá pelos interesses patrióticos dos seus autores já consagrados. Não causa admiração que países como a França, os Estados Unidos ou o Reino Unido estejam entre os países mais condecorados com este prémio internacional. A qualidade de muitos destes escritores franceses ou de língua inglesa apresenta-se extremamente aquém da de José Saramago e de vários escritores recentes da língua portuguesa, que entretanto vieram a falecer sem receber tal distinção, como Vergílio Ferreira, Miguel Torga ou Sophia de Mello Breyner. Por outro lado, é igualmente notável que tão poucos prémios Nobel tenham sido dirigidos a mulheres: o conservadorismo, talvez causado pelo frio que se faz sentir em Estocolmo, ainda está patente nas decisões de um assunto tão sério como a cultura.

No segundo conjunto de personalidades temos os reservados, ou talvez os satisfeitos mas acobardados devido à inveja latente ou à ignorância perante questões de estilo e linguagem: entre outros, saliento os nomes de D. Manuel Martins, um religioso, Eugénio de Andrade, poeta, e Maria Teresa Horta, uma escritora portuguesa. D. Manuel Martins frisou que, enquanto português, o contentamento é inerente, apesar de condenar o ateísmo de José Saramago que, na sua opinião, deveria servir-se da sua excepcional capacidade de escrita para desenvolver temáticas religiosas ou, no mínimo, menos heréticas. O poeta Eugénio de Andrade, o qual admiro formidavelmente, considerou que o prémio, ainda que atribuído com justiça à literatura portuguesa, deveria ter sagrado um poeta e não um prosador, por ser da opinião de que o génio literário português está mais visível na poesia. Aceito, sem qualquer tipo de reservas, que a poesia portuguesa, muito em particular, merecia já uma condecoração deste género; porém, quem para a receber no ano de 1998? Miguel Torga estava morto... Fernando Pessoa estava morto há muitíssimo tempo... António Gedeão não estava mais vivo que os outros... Recebê-lo-ia Sophia de Mello Breyner (para felicidade do seu horroroso filho), ou recebê-lo-ia ele próprio, Eugénio de Andrade? É possível entender esta opinião com alguma inveja da parte do poeta. Por fim, Maria Teresa Horta considera que muitas autoras portuguesas possuem uma obra tão ou mais relevante do que José Saramago. Não é novidade que defendo o sexo feminino nestas questões onde o masculino ainda parece ter um lugar de destaque e de primazia... No entanto, que mulher terá obra equivalente à de José Saramago, nomeadamente no género narrativo? Apenas uma: Agustina Bessa-Luís, que, não sendo, na minha opinião, merecedora de comparação equitativa com José Saramago, possui, na opinião deste último, o maior génio literário português. Por tal, aguardo com grande expectativa o próximo Prémio Nobel português da Literatura, que será atribuído, se Deus for favorável, à grande Agustina.

Por último, encontramos as duas personalidades que discordaram com a decisão da Academia Sueca: D. Duarte de Bragança (o futuro rei que nunca o será) e Sousa Lara. O primeiro mostrou-se ousado a ponto de questionar a competência dos membros do júri, que, no seu entendimento, não leram, com toda a certeza, as obras de José Saramago, o qual escreve de uma forma "difícil e pesada" e "pouco cristã". Sousa Lara, por outro lado, vale todas as reprimendas morais que me cabem pensar. Este antigo deputado foi o responsável, no início da década de 1990, pela deslocação de José Saramago para o país vizinho, após este deputado haver censurado o seu livro Evangelho Segundo Jesus Cristo, impedindo-o de se candidatar ao Prémio Literário Europeu.

No entanto, mesmo a nível internacional, muitas personalidades, algumas delas inseridas nos círculos de decisão dos Prémios Nobel, atribuem alguma injustiça à sua atribuição no ano de 1998: segundo muitos, a condecoração do nosso Saramago resultou de uma campanha profissional de publicidade que terá resultado no conhecido prémio. Alguns vão mais longe, denunciando igualmente a Alemanha de, no mesmo ano, haver praticado uma campanha de contornos semelhantes. Exploremos o conteúdo destes juízos: um ano antes da atribuição, José Saramago foi, na Suécia, objecto de muitas atenções da elite literária. O escritor português foi convidado a realizar uma visita a Estocolmo, capital oficial da Suécia, onde discursou na Universidade Estatal e num Seminário e deu variadas entrevistas aos mais diversos órgãos de comunicação social. Na mesma data, a televisão estatal sueca produziu um documentário relativo a José Saramago. Um mês mais tarde, a enorme Feira do Livro de Frankfurt, a maior do continente europeu, elegeu Portugal como o país em destaque na edição desse ano. Onze meses mais tarde (que, segundo os analistas que discordam com a atribuição, deverá ser muitíssimo pouco tempo), José Saramago é sagrado vencedor do Prémio Nobel da Literatura. Para muitos, o mérito faltou nesse ano; para outros, como eu, foi um ano de invulgar capacidade de projecção do nosso país: o mundo encontrava-se de olhos postos em Portugal, graças à organização da Exposição Internacional dos Oceanos, e muitos outros países, em oportunidades como as já referidas, escolheram explorar o melhor que em Portugal era feito em várias e diversas áreas. Naturalmente que José Saramago, decorrente tal facto da sua grande qualidade e reconhecimento internacional que sempre teve enquanto escritor, beneficiou dessa projecção, atingindo o momento de maior glória de um escritor português.

Terminarei o presente artigo com uma informação que talvez silencie a malvadez de tantos quantos não entendem o talento imenso de Saramago: o crítico literário americano Harold Bloom, conhecido como o mais brilhante de todos os críticos deste planeta (o mesmo que, como referi há alguns meses, reconhece Fernando Pessoa como o poeta mais influente do século XX, a par com Pablo Neruda), vê em José Saramago o maior génio literário vivo: as suas exactas palavras foram, na língua de Shakespeare, "the most gifted novelist alive in the world today". Mais palavras julgo não serem necessárias. Não deveria "o mais talentoso romancista vivo do mundo actual" receber o Prémio Nobel da Literatura, se tantos outros o recebem? Sim... e mais: deveria receber dois!

2 comentários:

IsacTamente disse...

Devia receber dois ou três! ahahah =D
Grande Saramago!!!

Muito bom artigo, gostei muito.

Fiquei foi intrigado de como o conseguiste publicá-lo cerca de 1a hora e pouco depois de sairmos da escola :O

Não era este que ia exigir-te 4 horas? lol

Enfim, avizinha-se então uma tarde cheia de História, e possíveis sestas, para ti, provavelmente.

Isac

Anónimo disse...

Embora não seja um grande apreciador de Saramago, aprecio muito Arte, e é com muita pena que vejo morrer este blogue.

Cumprimentos e faço votos pelo o regresso d'Os Fígaros

Luís ;)