E por que lhe chamo esta expressão, entre variadas outras que podia escrever para nossa memória de quem foi Fernando Pessoa? O significado que coloquei na expressão liga-se com o
fenómeno mais marcante da sua obra: a heteronímia, a criação de almas distintas dentro da sua alma. Afirmo então que dentro da alma de Pessoa viviam quatro ou cinco poetas, mas só um deles - ele próprio - dentro da sua pele. E aqui tenho explicado o rasgo de irreverência que quis trazer à vossa leitura semanal.
Por muito me doerem os braços do pensamento, e muito em recordação dos escritos do nosso poeta, hoje debruço-me somente sobre um tema em particular. Depois de na passada semana, há sete dias, ter apresentado o decorrer da vida do marco principal da literatura portuguesa do século passado, hoje referirei a obra literária, aliás poética considerando a necessidade do rigor, deste grande génio que viveu onde nós vivemos. O legado literário que este homem nos deixou, ele que agora repousa no Mosteiro dos Jerónimos com os maiores êxitos do país, não pode nem deve ser avaliado como espelho de angústias e de desespero, de hesitação e de pouco fascínio: a razão que Fernando Pessoa sempre buscava permitiu-lhe estabelecer um leque muito vasto e inteligente de filosofias que nos elucidam quanto à atitude que se deve ter perante a vida e consegue mostrar-nos as fraquezas desta realidade, que aos menos atentos pode parecer evidente e firme, mas que o não é intensamente.
Entre toda a literatura que possui a assinatura do próprio homem como rodapé, apenas um conjunto especial de poemas terminou publicado em livro antes da sua morte:
A Mensagem. Reportando-me a informações trazidas muito em especial das aulas, é certo que apenas um verdadeiro português saberá ler, positivamente ler e entender, o livro lírico e épico de Fernando Pessoa. Isto porque só é verdadeiro o português que houver lido a maior obra literária da Humanidade,
Os Lusíadas, do Camões. É como se a grande verdade dos grandes feitos e glórias de Portugal, hoje, no nosso país, vagueassem ainda nos metros que unem as estátuas de Pessoa e de Camões, ambas no Chiado de Lisboa. Porque, procurando dizer o que corresponder à realidade e o que é justo, foram estes dois génios da palavra que definiram e justificaram as honras que ilustram o passado do nosso povo. E, apesar do passado não mais fugir por ser nosso,
não é menos certo que o passado, sem acções que o façam renascer, acabará nunca regressado. A preocupação e a sabedoria do poeta do Chiado foi justamente esta: demonstrar como todo o nosso belo caminho para o futuro, para ser consolidado, necessita o contributo, na forma de acções, de cada um dos portuguesas e de nenhum em especial que se sente no comando da nação. De todos nós em simultâneo, que organizemos uma força que, como antes, nos leve à frente de tudo a dirigir os interesses de nós próprios. Grandes e muitos, nós nunca fomos... mas ainda assim conseguimos uma forma de ser grandes, sendo grandes uma palavra diferente de grandes que disse anteriormente (entenda-se o jogo de palavras relativamente à grandeza perdida de Portugal, ou prefiro dizer
grandeza adiada, que se cansou das nossas gentes e mais tarde voltará pelo esforço que reconhecemos necessário.)
A Mensagem pretende chamar o leitor para esta realidade que é pouco fantasiosa e que não advém, como grande parte da poesia de Fernando Pessoa, da sua grande imaginação. Este livro, este estilo de epopeia contemporânea, dita o caminho que devemos, enquanto portugueses de hoje, prosseguir: olhar o passado com consideração e respeito, mas entender que nada do que foi alcançado pelos portugueses foi obra somente do Destino: pois seremos sempre capazes de retornar ao passado glorioso! A Terra é nossa se quisermos! O mar é nosso se quisermos!
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Aqui temos o verdadeiro poder do conjunto, porque nada somos individualmente se possuímos todo um povo que nasceu para, renunciando ao bem-querer de si próprio em particular, se unir em busca do triunfo que nenhuma outra nação entende possível. No entanto, deixámos esmorecer, hesitámos após vencer, como se concebêssemos que a vitória era malograda e não feita à nossa medida. Mas necessitamos renascer, morrer agora e fazer como a fénix faz: deixar morrer para, ao renascer, ser mais forte.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
A mensagem é esta: está na hora de renascermos e deixar reviver, nas nossas almas, a alegria e
orgulho que os nossos antepassados testemunharam quando, do nosso mar, chegavam as notícias que éramos os melhores... Que delícia que é ler este livro e achar, por ser certo e concreto, que todos juntos havemos de conseguir, trabalhando, trabalhando. Pensando, se quem nos fez, fez-nos a pensar.
A primeira edição deste livro foi no ano de 1934, e a segunda no decorrer de 1941: em plena ditadura. Agradeçamos a Salazar, se não muitas vezes o fazemos, o apoio que este deu a Fernando Pessoa. Sabemos bem, no entanto, que se o fez foi por uma obra literária, do cariz patriótico que esta defende, revelar-se útil como propaganda do regime instaurado. O Secretariado de Propaganda Nacional classificou esta obra na segunda categoria de um concurso literário, porém com a compensação do mesmo prémio monetário do primeiro classificado. Fernando Pessoa morreu pouco depois, mas aceita-se que este esperasse a publicação deste livro para, posteriormente, lançar toda a sua obra e dos seus heterónimos.
E então, como liga ao que acabei de escrever, falarei brevemente da obra poética do ortónimo Fernando Pessoa: o próprio escreveu, numa perspectiva da sua literatura, que é um fingidor, e que tudo cria com o pensamento que imagina e fantasia... Isto levou a que, pelas décadas que têm passado, muitos curiosos não tenham satisfeito a sua curiosidade em relação a aspectos biográficos do poeta - este conserva-se um enigma! Ninguém pode afirmar sem hesitação que Fernando Pessoa era e sentia aquilo que escrevia. A sua obra, todavia, é marcada de um sensacionismo vincado, expresso na linguística do movimento literário que introduziu em Portugal e que sempre defendeu com severidade: o modernismo. É, mais do que os seus heterónimos, utilizador da métrica e rima, lembrando-nos, numa primeira análise, um pouco o rigor de outros tempos, como Camões ou Bocage. No entanto, conclui-se depois que o que Pessoa pretendia era trazer à sua poesia e aos seus desabafos a razão, aperfeiçoando a sua literatura com regras que ajudam o pensamento a chegar mais alto. "A razão aperfeiçoa os sentidos", poderia ele ter escrito, mas deixou para que eu o escrevesse.
Por assim dizer, a heteronímia foi, em grande parte, a forma encontrada pelo Poeta para nos dar uma perspectiva alargada e múltipla da realidade em que vivemos: dá-nos, através de várias assinaturas e várias personalidades, os vários lados da verdade e diferentes filosofias, todas correctas mas todas distintas. E é sobre a obra poética dos heterónimos de Fernando Pessoa que escreverei os dois próximos artigos deste espaço sempre vosso.