segunda-feira, fevereiro 16

Literatura: O bucólico e o futurista

Entre o que hoje ocorre realizar para um comum mortal como sou, escrevo-vos como é sempre o meu hábito do início das semanas. E este artigo, se algum dos artigos é, de consciência nossa, um artigo banal, difere bem dos outros. Termino hoje as quatro semanas sucessivas que me dei a tratar Fernando Pessoa nestas crónicas, e por essa efeméride trago uma determinada felicidade, conferida à minha calma por via do sossego que se anuncia: hão-de saber de pleno conhecimento que adoro Fernando Pessoa e os seus brilhantes heterónimos; todavia, um génio torna-se mais complexo de analisar, e muito em particular este poeta, tão místico que ainda hoje se demonstra a quem o pretende entender e se esforça nesse sentido.

Vejamos o que percorremos, para melhor concebermos o lugar em que nos encontramos e todo o caminho que hoje importa avançar. Para a iniciação a Fernando Pessoa, abordei a sua vida e esbocei uma panorâmica opinião acerca de quem deixou ser para os tempos que viriam. Na segunda crónica dirigi-me ao "poeta da própria pele", consoante me aproveitou chamar-lhe, analisando a poesia do ortónimo e referenciando a sua obra "Mensagem". Há tempos de sete dias feitos agora, iniciei-me ao estudo dos seus heterónimos, tendo identificado os três principais e ainda o semi-heterónimo Bernardo Soares, mostrei a carta redigida por Pessoa a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos e ainda tratei o heterónimo Ricardo Reis - o clássico. Hoje falta, pois, abordar o bucólico - Alberto Caeiro - e o futurista - Álvaro de Campos.

O heterónimo Alberto Caeiro, se o podemos afirmar em linhas gerais como o faço, é o mais demarcado do próprio Fernando Pessoa, revelando todos os traços de personalidade que dificilmente remeteríamos ao ortónimo. Encontramos, então, uma total libertação do poeta, neste heterónimo preterindo qualquer privilégio ao pensamento e à razão. Segundo Caeiro, o ser apenas é, apenas existe, e qualquer desvio que preconize relativamente à sua natureza pacífica e sensacionista é visto com desconfiança e desagrado. O "guardador de rebanhos", como ficou conhecido Alberto Caeiro, ou o "mestre", terá vivido a maior parte da sua vida como camponês das terras altas, faltando-lhe, contrariamente ao ortónimo e, ainda mais, a Ricardo Reis, a escolaridade quase na sua plenitude. Ficou cedo órfão, tendo sido criado pela sua tia-avó, excelente pessoa de parcos rendimentos. A sua obra poética (que em termos de génese foi escrita por Fernando Pessoa, quase na totalidade, num único dia), reflecte estas vivências, influenciado, no entanto, pelo poeta português Cesário Verde - a quem dedica, inclusive, o poema "Guardador de Rebanhos". A natureza é o elemento fulcral da sua obra, moldando a sua personalidade e as suas emoções consoante as alterações de clima e a transição entre dia e noite. O seu registo linguístico, resultante da sua fraca formação, é simples e objectivo, demonstrando, porém, uma extrema complexidade reflexiva. O poema que sigo a expor exemplifica a escrita bela, simplista e tranquila do poeta que rejeitava a filosofia e procurava as diferentes emoções que nos oferecem a vida e a natureza:

"Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado."

Álvaro de Campos, com o qual terminarei esta longa abordagem sobre a principal figura da literatura portuguesa do século XX, é o mais complexo entre os diferentes heterónimos criados na imaginação de Fernando Pessoa. A genialidade deste heterónimo diz muito com a evolução dele mesmo que, como um escritor consolidado e material, manifestou três diferentes fases na sua obra. Álvaro de Campos, segundo Pessoa, era um engenheiro português de educação inglesa, que em parte nenhuma do mundo se acreditava, por o sentir, em casa.

A primeira fase da sua obra, se por fases vou referenciá-la, obteve o nome de "Decadentista". Nos poemas redigidos nestes anos, Álvaro de Campos revela um cansaço e tédio acerca da civilização moderna, desconhecendo o verdadeiro sentido da vida. O Poeta procura, como forma de se manter vivo e sabê-lo, novas experiências sensacionistas, como o consumo de drogas e tantos outros vícios. O pensamento era uma constante em Álvaro de Campos, tal como em Fernando Pessoa, e o seu desencanto completo derivava largamente desta sua obsessão pelo raciocínio que afasta as hipóteses de levar uma vida tranquila e estável.

"É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente."

A segunda fase da obra de Campos recebeu o nome de "Futurista", demonstrando, como nenhuma outra das três, uma incrível energia perante a existência humana. Álvaro de Campos parece ter encontrado na civilização e na modernidade a justificação e o meio de tornar o seu ser eternamente jovem e motivado a fazer e experimentar sempre coisas novas. A exageração do sensacionismo que se exalta nos seus extensos poemas é acompanhada por um extremo erotismo e sadomasoquismo que parte das formas inovadoras das máquinas modernas.

"Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, (...)"

Esta força de vida, de tal forma contagiante como uma doença maldita, cessou com o tempo, originando a terceira fase - intimista ou pessimista. Na verdade, arrisco afirmar que a verdadeira forma de viver de Álvaro de Campos era esta de enfrentar mal a vida ou confrontá-la com o olhar em baixo, notando em cada instante o seu próprio abatimento e desejo de desistir das condições que nos são infligidas. Simplesmente a civilização e um sem-número de avanços tecnológicos interromperam, por um curto tempo mas efectivo, esta filosofia de vida baseada no desgaste e na vida como início já da própria morte.

"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum."

E é este leque de variações imensas e opções sem fim que é, com efeito, a obra poética do génio de Fernando Pessoa. Foi o único poeta que, com a sua mente, utilizando-a ainda mais que qualquer artista, concebeu artistas de elevado talento, todos originais entre si, todos eles com filosofias de vida plausíveis e interessantes à análise. Seja com base na reflexão do desgosto, seja pelo exagero das dinâmicas, ou seja mesmo pela tranquilidade de sentir o Sol bater-nos na cara, a verdade é que a poesia vasta que nos deixou Fernando Pessoa no testamento, a todos nós, é bela pelas perspectivas todas que compreende, como um polvo que, pelos tentáculos, chega mais longe em todas as direcções.

1 comentário:

Anónimo disse...

Pessoa é uma personagem maravilhosa e fascinante na sua despersonalização dramática, em todas as suas facetas e vivências.

De todos os heterónimos pessoanos, estes são os que mais aprecio: Caeiro pelo seu modo de estar e ser, que ao negar a metafísica e o conhecimento de tudo para lá dos sentidos, desenvolve dentro de si uma tão própria e singular filosofia que me maravilha e intriga. Muitas vezes, considero a sua mentalidade tão primitiva, tal como os homens de há milhares de anos atrás que não pensavam, só sentiam, e sentiam-se unos com a natureza, facto que a vida em sociedade veio muitas vezes apagar.

Campos, por sua vez, tem um sensacionismo diferente, ligado às sensações, que na fase futurista vive, constrói, desconstrói, cria, destrói, rasga, despe, mata. Sem nunca se sentir cansado. Nunca. Nunca mesmo.
Por outro lado, aquilo que mais me fascina no "ser" de Campos é a sua humanidade, a maneira como evolui e como tem fases na sua vida, como os seus sonhos de ser máquina febris e inabaláveis dão origem ao abatimento, ao tédio, à angústia do passar do tempo, das estações, das pessoas, das memórias, da perda, da solidão.
É neste misto de tristeza e êxtase que Pessoa encontra, na minha visão pessoal, aquilo que nos é mais próximo a todos, aquilo que é íntimo mas sincero, que a todos acontece e todos afecta. Campos é, realmente, um de nós. Alegre como nós. Desencantado e triste, algumas vezes, como nós. Pensativo, não infimamente racional, tal como nós.

Parabéns pelo trabalho.