Em gesto de recordar o que anteriormente referi a propósito do vasto legado literário que nos deixou Fernando Pessoa – o ortónimo – lembremo-nos de dois campos essenciais: a obra lírica e o seu livro publicado, A Mensagem. Pois embora seja esta última a sua obra de referência num determinado panorama, tratando-se dos seus únicos poemas vistos pelos leitores durante a sua vida, não é hoje o marco fundamental e mais característico da sua extensa obra literária.
Isso deve-se à situação de o génio de Pessoa ter albergado no interior da sua frutífera mente outros homens de personalidades algo diferentes, unidos apenas por uns gostos ou atitudes semelhantes e que poderão mostrar, aos analistas, que todas viviam no mesmo corpo e sofriam, a bem dizer, os mesmos desgostos e as mesmas carências. Não podia eu estar a falar senão dos conhecidos heterónimos de Fernando Pessoa. A sua heteronímia, em traços gerais, compreende três poetas e um semi-heterónimo. Este último, Bernardo Soares, não é contemplado na lista de heterónimos pessoanos porque são-lhe atribuídas suficientes características do próprio ortónimo, não se manifestando na sua escrita uma personalidade alheia ao mundo de Fernando Pessoa, ele mesmo. Os heterónimos mais influentes na literatura portuguesa desde Fernando Pessoa e no presente são, com efeito, e por ordem cronológica acerca da sua génese, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Do primeiro tratarei ainda na extensão deste artigo de hoje e a ele devo o título que acima escrevo; os restantes virão na mais próxima data, daqui a exactamente uma semana.
O fenómeno peculiar da criação de heterónimos por um poeta, utilizados especialmente para expressar diferentes visões da vida e do mundo que nos rodeia, surge como a demonstração da evidente genialidade do nosso poeta. Foi ele, precisamente, o grande poeta universal que dividiu a sua obra literária em diversas personagens, concedendo a si próprio uma diversidade original de faces com que encara a vida. Fora de portas, no estrangeiro, a predilecção que se regista num público mais alargado em relação a Fernando Pessoa deve-se, igualmente, à sua criação de heterónimos, que envolve a sua figura numa atmosfera de mistério e constante dúvida relativamente a quem foi, e como foi, então, o verdadeiro Pessoa. Aponto variadas razões para o sucesso que ainda hoje a literatura de Fernando Pessoa alcança noutros países: além de ser factual que a literatura portuguesa sempre ultrapassou fronteiras pela sua elevada qualidade e privilégios que sempre recolheu em Portugal em detrimento de outras artes como as plásticas e a música erudita, é má memória esquecermos que Fernando Pessoa estudou na África do Sul e sempre, desde esse tempo, escreveu também na língua inglesa, fazendo hoje que o público inglês conserve na sua língua mãe alguns textos e poemas deste génio, e assim desperta a curiosidade de um público extensíssimo a ler mais, incluindo traduções do legado literário em português.
Em correspondência a Adolfo Casais Monteiro, seu amigo e interessado nos seus escritos e na sua poesia, Fernando Pessoa descreveu o processo com que surgiram os seus heterónimos: por geração espontânea, e não remetam a expressão para uma religiosidade fervente da minha parte ou da parte do poeta. Tento dizer que a personalidade dos heterónimos invadia a sua própria em certos rasgos de genialidade a que ele assistia. Por certas vezes assume ter tentado forçar a aparição de novos heterónimos, racionalizando novos caracteres, mas sempre sem sucesso: era mais do que podia abarcar. Até uma vez pretendia surpreender o seu amigo Mário de Sá-Carneiro, querendo escrever-lhe uma série de poemas numa personalidade diferente da sua, como a que viria a ser, mais tarde, a de Alberto Caeiro. Todavia, sem êxito: não se conseguia libertar do abraço que o seu drama pessoal, dele mesmo, lhe apertava. Ricardo Reis, com efeito, foi o primeiro heterónimo a surgir, tendo desde já o mérito de ser pioneiro em questão de concepção.
Na mesma carta que redigiu a Casais Monteiro, descreveu Ricardo Reis: "Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-o algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. (…) é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria." Nada melhor do que as palavras do próprio criador para explicitar os principais traços deste primeiro heterónimo. Como aparece, os heterónimos não existiam somente na forma de escritores, mas sim como pessoas vulgares, com percurso de vida, educação, preferências bem deduzidas e passado psicológico. Antes de eu mesmo lhe atribuir mais características e de realçar outras que Fernando Pessoa referiu nesta carta, sugiro que atentemos a uns versos de Ricardo Reis e à minha análise a cada estrofe.
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
O Poeta demonstra a existência de um amor pacífico. Sugere à sua bonita amada (digo bonita por ser ele um poeta clássico, que idealiza a beleza das mulheres) que observem o curso do rio e verifiquem como a vida passa: o rio é a vida, vai passando com um curso definido à partida: é o Fado.
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
O Poeta verifica que não somos Deuses, somos antes mortais e que não podemos contornar esse nosso Destino de morrermos, de ir ter ao mar se a vida for um rio. Então, é necessário aproveitar o bem da vida, preocupando-nos em não sofrer um único instante, mais a mais porque o momento presente é valioso e não se repetirá.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Se não se procura o sofrimento, valerá mais viver e amar como Platão, para que a morte do sentimento, mais tarde, não traga lágrimas ou infelicidade a nenhum dos amantes: amem-se sossegadamente, sem compromisso sério, sabendo gozar aquilo que é mais certo: a vida, se igualmente certa é a morte.
A poesia de Ricardo Reis encontra neste poema um momento chave. É este um poema bastante representativo da filosofia de vida que Reis nos apresenta, centrada no carpe diem e assente na certeza de que a vida é breve e a morte virá sempre. A bem ver, não sabemos se virá já ou se só nos acolherá daqui a muitos anos. Defende que o amor idealizado, não físico, é o amor que todos devemos ter, é ele o mais puro e aquele que, por ser livre e só depender de nós e de ninguém mais que possa sentir diferente, nunca nos trairá a paz e a tranquilidade. É aquele amor que nos assegura uma das coisas mais importantes para a firmeza da felicidade: a estabilidade.
Podemos afirmar que, pela linguagem e pela forma, mais do que pelas temáticas, Ricardo Reis representa na poesia pessoana a herança clássica da literatura ocidental: uma forma de enriquecer o movimento modernista de Orfeu com os conceitos e as maravilhas da literatura de influência grega e latina. Da antiguidade retira também o paganismo, renunciando à Igreja e às suas doutrinas. É, entre todos os heterónimos e mesmo lembrando-me do ortónimo, o mais erudito, sendo conhecedor dos mitos, lendas antigas, figuras das antigas epopeias, além do variado e rico vocabulário que usa nos seus poemas. Ao contrário do ortónimo ou de Álvaro de Campos, que demonstram o descontentamento perante a vida ou as pessoas, Ricardo Reis adopta uma postura pacifista e conformada em relação a tudo aquilo com que é necessário viver, apostando em procurar a melhor forma de resistir e de ser feliz no meio de tantas imposições e de uma tal brevidade e efemeridade da vida. Ricardo Reis revela-se um professor cheio de ensinamentos para nos oferecer, além de criador de uma poesia de extremo bom gosto e agradável à leitura. Reclamem, se não concordam com esta minha opinião, sejam livres e não se conformem (apesar disso ser contrário aos proclamados ensinamentos de Ricardo Reis…)
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