segunda-feira, novembro 24

Literatura: Carta da Infância, por Carlos de Oliveira

Passo, pela data que hoje se percebe e pelas horas que no pulso de tantos se anuncia, a presentear o meu público com um poema neo-realista português que me fascinou assim me debrucei na sua contemplação, ao início ligeira, mas gradualmente adquirindo, bem mais do que compreensão, uma certa dose de afecto. É o seu nome "Carta da Infância", pela mão de Carlos Oliveira (1921-1981).

Amigo Luar:
Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem da palma das
minhas mãos e brincar com elas no orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que ele te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

Entre alguns pontos interessantes do texto, saliento:
- estrutura circular, entrevista pela palavra inicial que coincide com a palavra com que o poema termina;
- dedicação do poema ao Luar, guardador da nossa infância;
- recordações dos pequenos momentos que procuram ser a essência do bom do passado, como as brincadeiras na rua ou a luz;
- liberdade textual, sem regras métricas ou rimáticas de qualquer tipo, permitindo um aprofundamento da ternura ou paz que o tema parece exigir.

Desde que me confronto de certa forma e espécie com ideias quase revolucionárias nesta cabeça, que me veio a vontade de vos apresentar não só poemas e pequenos textos, mas mesmo partes de romances neo-realistas, no seio do intuito de esclarecer, expondo produto e conteúdo, acerca do movimento que estou a estudar convosco. Assim sendo, dedicarei porções desta semana nas estantes de uma biblioteca a decidir de qual romance escolherei para dele transcrever as páginas iniciais e colocá-las neste espaço. Poderá surgir em alguém a posterior vontade de prosseguir com a leitura, procurando um original integral. Veremos como seguirá este projecto!

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