"Sou todo incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como nunca ninguém a admirou!" Disse, ou por outra, escreveu isto Mário de Sá-Carneiro, e mais acertadas não podiam ser as suas palavras, não somente pela lógica verdade de ser habitual conhecermo-nos a nós próprios com mais rigor do que os outros que nos olham, mas muito também porque este drama da psicologia deste autor verificou-se naquilo que ele fez da sua curta vida, e mais ainda se verificou na forma como ele mesmo, aos vinte e seis anos, lhe marcou o trágico final.
A tragédia da sua vida não difere longamente da de muitas outras pessoas, marcada com dureza por males sucessivos e mais ou menos contínuos que nos atormentam e levam ao fundo de um mar de angústias. Todavia, as tormentas deste homem recaíram sobre si quando apenas, também sobre si, recaíam somente poucos anos de idade. Isto uma vez que se viu desprovido da presença de ambos os pais muito precocemente, tendo vindo a habitar Camarate com os avós, vivendo assim toda a sua infância sem uma devida imagem paterna ou materna, tão essenciais ao desenvolvimento de uma mente adulta e sensata. Podemos ter este episódio como o primeiro do drama da sua curta existência. Em concordância exacta com o decorrer dos tempos e anos, é facto que à medida que decrescia a capacidade de enfrentar os problemas que se avizinhavam, em oposição crescia em Sá-Carneiro um génio, pois que é mais que talento, sempre e sempre mais demarcado. Aos dezasseis anos de percurso no mundo, e mais de metade desse percurso, sem que qualquer espécie de gente pudesse imaginar, estava já atravessado, fazia já traduções de mestres da literatura europeia da centúria anterior, nomeadamente vultos como o alemão Goethe e o francês Victor Hugo.
As várias vidas que tem o ser humano, e quero dizer a vida física, psicológica e social, todas sem excepção assinalaram um caminho semelhante: o caminho do desgaste e da queda gradual. Como com facilidade concordaremos, não há no homem idade mais propícia aos desentendimentos do passado com o presente do que a época da adolescência, e figura ser natural, por demais natural, que todas as suas angústias, se eram já tão elevadas, atingissem um nível ainda superior e que anunciasse um fim possivelmente próximo. E assim ocorreu. Na verdade, nunca sabia concretamente o que queria, ou se nada queria fazer por si. Se Coimbra era a cidade universitária única que o país oferecia aos jovens, para lá se haveria de encaminhar, mais tarde ou mais cedo, um cérebro como o que estamos a tratar. Matriculou-se em Direito e lá conheceu o seu eterno amigo Fernando Pessoa, com quem viria a fundar a revista modernista Orfeu. Direi eu que foi dos conhecimentos culturais mais frutíferos da história da literatura portuguesa, acima, por exemplo, da grande amizade e companheirismo entre Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, que juntos produziram duas obras de extrema qualidade. Fernando Pessoa dedicou poemas ao seu amigo Mário de Sá-Carneiro, nomeadamente o poema Opiário, da autoria do heterónimo Álvaro de Campos. De pouco mais rendeu a curtíssima estadia do nosso protagonista de hoje na cidade do Mondego, e isto declaro pela súbita decisão de abandonar o seu curso; aparentemente a vida coimbrã não lhe agradava e sonhava com ambientes de um cariz boémio distinto, mais maduro, como o que só encontrou em Paris, onde veio a viver só não a tempo inteiro, se a Lisboa se deslocava por inúmeras vezes, especialmente para se encontrar com os seus amigos modernistas - a geração do Orfeu.
Foi então no seu lar, se isto podemos chamar à capital francesa, que foi composta a quase totalidade da obra literária de Mário de Sá-Carneiro, que varia essencialmente entre poemas e contos. Aproveito a ideia lançada para informar do próximo artigo que verão aqui elaborado, em que farei o resumo e a avaliação de um conto deste autor, que me comprometo a ler durante a semana que se inicia a partir deste instante.
A morte conheceu Sá-Carneiro, por iniciativa do próprio, no ano de 1916. Nos últimos dois anos de vida, ficaram registadas, nas cartas remetidas a Fernando Pessoa, as dores e os sofrimentos desta personagem incontornável da vida literária imensamente rica de que Portugal dispõe. Se muitos autores encontram no avançar da idade a real oportunidade de produzir as suas obras-primas, caso dissimilar teve, por obrigação da sua última decisão, Mário de Sá-Carneiro, sem que, no entanto, essas obras de inegável qualidade tenham deixado de surgir com a sua assinatura. Por ordem natural, a obra de Sá-Carneiro foi reconhecida especialmente após a sua morte, como o autor por várias vezes proferiu na sua vida que aconteceria.
A sua obra, falemos um pouco acerca dela, foi influenciada, quanto aos temas e a uma certa linguagem, por autores diversos como Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Baudelaire, Dostoévski e Cesário Verde. A título póstumo, o legado de Mário de Sá-Carneiro inspirou, entre outros, muito evidentemente o poeta português Eugénio de Andrade. Em relação às características dos seus textos, eu escolho, por sugestão de outros entendidos que escreveram nos sítios onde pesquisei, como as mais importantes entre outras, o narcisismo e o saudosismo. Este cariz egocentrista do discurso são causa e efeito dos seus dramas vividos. Assim sucedendo, os pequenos movimentos do modernismo literário em que Mário de Sá-Carneiro se inseriu, como o interseccionismo, o decadentismo, o paulismo e o futurismo, permitiram ao escritor expressar toda a sua dor de viver e de existir, vendo sempre a morte como a solução única e nem por isso difícil de alcançar, para a ela chegar bastaria a vontade de andar o caminho que o separava dela. Acabou a sua vida, mas a nós deixou a exaltação de cada uma das suas emoções, como havendo sido um enviado do além à Terra para ser em grande aquilo que todos nós somos em ponto diminuto, sentindo demais aquilo que a alguns foge aos sentidos. Pareci religioso ou fanático? Perdoem então, e vivam a vida.
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