Apesar de pouco declarado no artigo da semana que passou, por razões de ordem psicológica, visto que o nosso interior tende a largar-se pelo esquecimento como forma de desentorpecer, hoje guardo novidades que vos darei a conhecer, e hoje aliás mais cedo do que o costume - são agora dez horas da manhã. Esta escrita que desenvolvo todas as semanas vem hoje a coincidir com qualquer actividade suficientemente delicada que me faria abrir os olhos e não tornar a recair no sono.
Durante a semana que passou, encaminhei-me à biblioteca mais próxima de onde estou, aquela que já me parece conhecer quando me sente os passos indo ao seu encontro, e procurei literatura do autor que abordei na passada semana: Mário de Sá-Carneiro. Recordemos parcelas da sua biografia. Sá-Carneiro fundou a revista literária Orfeu, em parceria com os seus amigos, incluindo Fernando Pessoa, e nos poucos anos que tardou a sua vida desenvolveu uma obra escrita de extrema importância no contexto do início do século XX, na medida em que contrastou com as tendências em voga no virar do século. Os seus sentimentos que brotavam como nenhuns outros haveriam de matá-lo, por incapacidade deste de viver com eles e acordar com eles em cada dia. Entenda-se então que seria de fraca consideração se dedicássemos a este escritor um único artigo: valia ao menos dois artigos, mesmo que todos os que pudesse escrever neste blog, ao longo de todo o ano, fossem três ou quatro. Deste modo, e reavendo na memória o dito acerca de a sua obra se centrar na produção contista, trouxe das estantes da biblioteca um exemplar de contos de Mário de Sá-Carneiro, para que eu fosse capaz de hoje, segunda-feira, vir falar-vos do seu conteúdo.
Atá ao dia, nunca eu tinha lido verdadeiramente este autor, e a surpresa atendeu ao que eu não esperava encontrar: um escritor de extrema simplicidade mas de grande técnica expositiva, que, com a sua narrativa, capta as vontades dos leitores. O conto era bastante curto, chamava-se Sexto Sentido e tratava exactamente o que diz o seu título. Aproveita a ocorrência de haver escrito como título esta expressão para, no início do conto, explicitar o seu conceito, pela boca de uma autoridade da altura, o Doutor Gouveia, muito conhecido de Mário de Sá-Carneiro. Afirma então que o sexto sentido há-de desenvolver-se no corpo humano segundo a evolução da espécie, como um órgão que tende sempre a aperfeiçoar-se. Consistirá numa noção de tudo o que nos rodeia, por assim dizer: sentiremos então o que os outros sentem somente por os olharmos, e logo nos virão as emoções dessas pessoas como sentimos as nossas próprias. O sexto sentido também permitirá reconhecer o que de próximo acontecerá no tempo, como previsão do futuro chegado. Compreende-se pela noção que não reproduzi do livro que o sexto sentido é uma espécie de detector que nos concederá a sabedoria quase completa do mundo em que vivemos; deixaremos de ser o que somos para sermos, assim como todos, o colectivo.
Nesta teoria (não sei até que ponto fundada em estudos verídicos), o autor apresenta ao leitor um outro amigo seu, cujos pais chamaram de Patrício Cruz, também este contista, que, tempos depois, confia uma informação só a Mário de Sá-Carneiro: o sexto sentido, que se desenvolve na espécie humana, existe nele já em estado próximo da perfeição. Não sabemos, como não o soube Sá-Carneiro, se acreditar na veracidade do que nos conta Patrícia Cruz. No entanto, realidades factuais obrigam-nos a atentar mais ao improvável: Mário de Sá-Carneiro, sozinho em casa e sem telefones (como nos diz a lógica temporal), preparava-se para escrever uma carta ao seu amigo, quando este invade a sua morada e o olha nos olhos, dizendo que não precisará de lhe escrever aquela carta, pois está agora defronte dele. E mais, que após a terrível revelação da sua posse do sexto sentido (aterradora a quem não a esperava), Patrício Cruz grita que sua mãe se encontra a padecer e deixa a casa do nosso escritor. Estes sucessos, que mais parecem ficção científica contemporânea, não me garantem a total e absoluta realidade dos factos, muito por nunca eu haver ouvido falar de Patrício Cruz e não saber se ele, de facto, existiu, ou se antes pertencia ao mundo aparte que Mário de Sá-Carneiro construía com base nos seus sofrimentos do mundo real. Porém, termina o conto a referir o estado em que persiste Patrício Cruz, enlouquecido e que, por repetidas vezes, tentou o suicídio, alegando que é terrível saber de tudo, sentir tudo em simultâneo, que se perde a identidade pessoal e o amor às pequenas coisas - tudo se torna desproporcionado, e o pequeno que somos com dificuldade abarca e tudo que sabemos e sentimos. Fechemos os olhos e entremos nesta fantasia... percebemos mal, por tentar perceber, mas percebemos o suficiente para dar razão a quem o sentiu e disse horrores disso. Concluímos todos, do curto conto que Mário de Sá-Carneiro escreveu, que preferível é, inquestionavelmente, permanecer na ignorância do que saber tudo o que há. O escritor mostra, desta forma e através da boca de outrem, que não apoia a ciência nem as suas ambições de sexto sentido, isto é, de prever o futuro a curto prazo e de compreender tudo o que nos rodeia. Todos sabemos já, por anteriores palavras que escrevi, que a mente de Sá-Carneiro estava já cheia, como já estando demasiado farta ao nascer e assim continuasse até ao seu suicídio.
Na semana que se há-de aproximar trarei o início da minha abordagem a Fernando Pessoa, o grande poeta do século XX e uma personalidade reconhecida da História da literatura universal. Não sei ao certo como cumprir o dever de o tratar, mas disponho de uma semana para o descobrir e o concretizar em palavras, em sílabas, em letras.
2 comentários:
amei o teu blogue!
beijo
gostei da escrita.
hei-de por cá passar mais vezes. ;)
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