segunda-feira, janeiro 5

Literatura: Um conspirador inspirado

Dentro de cada homem, alto ou baixo ou moreno ou loiro, nada interessam meros detalhes de aparência física mais ou menos notória, residem princípios específicos e demarcados. Arriscaria eu a dizer, ou até a proferir, se a qualidade me pode ser concedida com justa causa, que a grandeza do homem, qualquer ele, desenha-se mais com os contornos que lhe dão a convicção nos seus princípios do que com a importância ética dos tais. Não generalizo, e neste caso que se apresenta o passado e presente movem consigo questões menos óbvias, que se deparam com pensamentos políticos, que divergem de quem para quem.

Eu venho falar-vos de Aquilino Ribeiro, membro da organização intitulada por Carbonária, que conspirou contra a monarquia portuguesa e originou o assassinato de um rei dos mais inteligentes que houve entre nós, motivada pela razão isolada de ser rei e isso significar sucessor de outros tantos que tais e defender a monarquia por ser o seu topo hierárquico. Opiniões aparte, ou ainda parecerei um monárquico convicto, eu, que olho tudo e nada com toda a desconfiança que encontro, Aquilino Gomes Ribeiro foi dos autores portugueses mais bem sucedidos e de maior qualidade do século XX. Nasceu no século XIX, quando decorria o ano de 1885, mas pela natureza jovem de quem nasce, apenas lhe chegou a maturidade e a carreira quando obteve uma maior idade do que a de nascença, iniciando a sua carreira literária no início do século XX (e portanto incluo-o no leque de escritores que importam recordar segundo o nosso projecto). Enquanto muitos escritores nascem no meio mais propício à criação textual, ou seja, na capital de Portugal ou em Coimbra, sempre capital das letras e da cultura, este homem viu a luz da vida na província, junto a Sernancelhe. Todos temos o conhecimento, alguns de causa, que se acha Portugal entre os países católicos, e na época a que remonta Aquilino Ribeiro, essa característica era essencial no perfil do nosso país. Mais do que nas cidades, a província era um local de religiosidade muito elevada, onde o governador das aldeias, por assim dizer, era ainda o seu pároco, pai de todos (apenas espiritual, pois senão cuidado com o pecado). Estas origens justificam a vontade da família, e a início do próprio futuro escritor, em tornar Aquilino Ribeiro um padre. Frequentou seminários em diversos lugares, como Lamego, Viseu e Beja, mas por fim desistiu, aparentemente por ausência de vocação. Perdoem-me, mas talvez Deus não quisesse como seu servidor um homem que conspiraria contra el-rei: lembrem-se que é o rei o escolhido do superior Deus para governar o seu país.

Uma vez longe dos projectos religiosos que tentou cumprir, Aquilino dirigiu-se a Lisboa, a fim de procurar sustento para a sua vida. Na cidade relacionou-se com todas as opiniões políticas que borbulhavam na altura, em particular a agitação republicana que conspirava pela queda da monarquia. Aquilino Ribeiro envolveu-se na ideologia republicana e converteu-se num membro activo da Carbonária. Como defensor dos objectivos republicanos, estreou-se na escrita, em jornais polémicos e interventivos para os quais escrevia artigos de propaganda. Pelas suas convicções, foi forçado a abandonar o país para sua própria segurança, refugiando-se em Paris, largamente republicana havia imenso tempo. Em 1914, porém, motivado pelo deflagrar da primeira Guerra Mundial, moveu-se de regresso a Lisboa. Foi, com efeito, após esta data que escreveu as suas principais obras, que, por tantas influências distintas que captou, não se consegue ainda hoje inseri-las em qualquer movimento artístico. Aquilino Ribeiro era, no início do século XX, um escritor do modo que o são hoje em dia e depois da revolução de Abril: escrevia conforme queria, mais para si e para o seu público do que segunda as tendências dos seus colegas. Muitos são os que defendem que a sua obra romanesca sofreu das influências do mestre romântico Camilo Castelo Branco, outros que o seu discurso remete as memórias aos descritos por Eça de Queirós. O que é certo para todos os críticos e entendidos na matéria é que Aquilino Ribeiro demonstrou na sua escrita as suas origens provincianas, através do vocabulário e expressões utilizadas brilhantemente. Esta tornou-se uma das suas mais abordadas características, mantidas em pleno e com igual qualidade em cada uma das suas obras, apesar de todas diferentes entre si.

Aproveito o ponto em que me deixei no texto para guiar o prezado leitor às citações que deixarei nesta parte do artigo. Por interesse próprio, levei-me por meu pé à biblioteca da minha área de residência, que é a que todos sabem, e trouxe ao meu doce lar um leve, e falo verdade que é leve, exemplar da obra de Aquilino Ribeiro que o mesmo intitulou de Quando os Lobos Uivam. Dessa obra extraí expressões que esclareçam o leitor do que acabei de afirmar relativamente à sua linguagem.
  • "Mas homem com mocotó."
  • "Atropelava-se a gente no patim"
  • "Bem sabia ele que não há, para ganhar a simpatia do serrano e fazer-lhe entreabrir a beiceira no franco sorriso fraterno ou exalçá-lo à simpatia e admiração, como uma saúde à boca das pipas."
  • "E, a esconder a vergonha, abraçava-o tão abraçado, que toda a sua cabeça se lhe amassagou contra o peito mamaçudo"
  • "Tudo na mesma, a velha aldraba, puída de tanto se lhe pegar, o espelho da fechadura escantilhado a uma banda, a couceira de lenho fibroso e terso, não chamassem ao castanho os ossos de Portugal."
  • "(...) as pernas escanchadas."
  • "Temia-se do génio dele e lá se pôs a esfregar fósforos, um atrás do outro, na caixa que tinha a lixa esfarpada até que conseguiu acender a luz."

Para terminar a curta, penso, abordagem de Aquilino Ribeiro com que pretendo agraciar-vos o bastante, permitam-me nova citação, desta vez de Vitorino Nemésio, um poeta e romancista açoriano nascido em 1901, que apreciava largamente o legado literário de Aquilino.

"A força plástica e musical do mundo aquiliniano é admirável. A serra portuguesa, a aldeia patriarcal, o rebanho transumante, vivem nos seus livros como a vida flamenga e holandesa nos quadros dos grandes pintores dos Países Baixos."

Como referi há instantes, é um assunto complicado procurar inserir a obra de Aquilino Ribeiro num movimento artístico da época, nomeadamente no modernismo, que vigorou na época em que este autor se revelou. Relembro aos que me seguem que presentemente estou a apresentar modos de escrita e escritores que resistiram ao modernismo em altura em que a arte moderna foi vigente: abordei Júlio Dantas, opositor activo do modernismo, e agora Aquilino Ribeiro, um escritor brando a nível de rivalidades literárias, mas acérrimo defensor da revolta política. Na próxima semana, com efeito, o modernismo inundará este espaço e nele recairá a minha preocupação estética. Iniciarei por uma outra biografia, e ouso rogar perdão por teimar tanto em biografias neste espaço onde devia facultar mais ocasiões para uma maior diversidade de assuntos. Porém, creio que uma biografia é a forma indicada de iniciar o público ao escritor do qual vou falar com tamanha naturalidade, como se ele na escola se sentasse à minha beira e eu, com ele na dianteira, brincasse aos jogos que divertem as crianças. Bem, falo de Mário de Sá-Carneiro, fundador da já referida revista Orfeu, sobre quem escreverei daqui a sete curtos dias.

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