A personalidade que me ocorre presentemente tratar neste espaço, pela ordem que antes estabeleci, é um grande poeta do século que já passou, nascido em 1937 e que viveu somente 47 anos. Nos séculos anteriores, sabemos todos que muitos grandes artistas, entre muitas outras pessoas, eram levados muito cedo, abalados por pestes ou por causas de morte daquelas que se consideram naturais, como se a morte muitas vezes não o fosse... Não há nada mais natural que a morte, meus caros: é provável que não sejamos felizes na vida, é provável que não vejamos materializados os nossos mais elevados sonhos, as nossas mais queridas ambições, é provável que não vejamos formar-se diante de nós e por nós a família que desenhámos com a vontade de cada um, mas é certo e concreto que todos morreremos um dia (que felizmente ainda não chegou). De tal modo que este poeta nos transporta quase a esses tempos mais remotos, quando o verdadeiro artista de mérito fechava os seus olhos à continuidade muito jovem, deixando apenas uma obra que viverá o tempo que este deixou. José Carlos Ary dos Santos deixou-a escrita, a sua obra de mais de 600 poemas redigidos acerca dos mais variados temas e para os mais distintos efeitos.
Ary dos Santos, como era simplesmente conhecido e tratado no seio do mundo artístico em que era uma referência, nasceu numa família burguesa de muito largas posses. O talento e a genialidade não escolhem berço; não andam vagueando nos leitos das crianças a buscar uma alma carenciada, para à ausência de orçamento familiar serem acrescentadas as angústias do coração. Antes, como se prevê, o mérito surge do trabalho feito por quem quer que o elabore: funciona o talento como um pobre mendigo faminto: este último quer ver a sua fome satisfeita, seja com um pedaço de pão bolorento, seja com o perfeito manjar do Olimpo da deusa Vénus; ao outro, interessa perceber o trabalho efectuado, não que o realize um indivíduo pobre ou um indivíduo rico. Contudo, as ambições de Ary dos Santos, ao que nos parece, diferenciavam do que se lhe propunha. Aos 16 anos, se o fez por vontade própria, deixou a residência da família e buscou uma forma de se sustentar sem a ajuda exterior: trabalhou nas mais diversas áreas, chegando a acumular empregos. Se o fez por força parental, por algum erro que cometeu ou por disputa familiar, então o caso aparece bem mais complicado de analisar. Se o entendermos, com efeito, como uma consequência de um acto ponderado do nosso poeta, podemos, por tal via, deduzir que o dinheiro não lhe causava um interesse tão grande como a sua dedicação às letras e à sua vida sozinho. De resto, é muito possível afirmar que esta sua decisão precoce favoreceu a sua criação literária: fê-lo crescer por necessidade, acrescendo-lhe à vida uma série de responsabilidades e um tipo de regime que, conciliados, induziram positivamente à criação poética que nos faz recordá-lo hoje.
Sabe-se que aos 14 anos, porém, já escrevia, tendo sido publicados os seus primeiros poemas, característicos de uma infância normal, que o próprio autor considerava de fraca qualidade. A Liturgia de Sangue é a sua efectiva estreia no difícil e injusto mundo literário, livro que foi publicado em 1963. Em toda a sua vida, após e antes esta redacção, Ary dos Santos nunca pôs a sua actividade artística de lado. Haveria de se notabilizar como poeta, mas também como um grande orador e declamador de poesia, gravando mesmo alguns discos, como Ary por si próprio e poesia política. A sua convicção política, aproveito para dizer, não fugia ao habitual deste século, apoiando o Partido Comunista (o que mostra mais uma vez as razões que o podem ter afastado do percurso que a história da sua família propunha para o seu futuro).
A sua obra mais significativa dirigia-se para um conceito muito concreto de poesia: escrevia os seus poemas para que estes fossem interpretados pelas mais diferentes vozes, desde o fado às grandes actuações portuguesas do Festival da Canção. Duas das canções que escreveu, Desfolhada Portuguesa e Tourada, saíram vencedoras do festival. O grande reconhecimento de Ary dos Santos viria mesmo como efeito destas suas obras que se popularizaram na voz de Simone de Oliveira e Fernando Tordo. Para Amália Rodrigues também escreveu vários poemas, como É da Torre mais Alta e Meu Amor, Meu Amor, que seguidamente exponho.
"Meu amor, meu amor
Meu corpo em movimento
Minha voz à procura
Do seu próprio lamento
Meu limão de amargura
Meu punhal a crescer:
Nós parámos o tempo
Não sabemos morrer
E nascemos, nascemos
Do nosso entristecer!
Meu amor, meu amor
Meu pássaro cinzento
A chorar a lonjura
Do nosso afastamento.
Meu amor, meu amor
Meu nó de sofrimento
Minha mó de ternura
Minha nau de tormento:
Este mar não tem cura
Este céu não tem ar
Nós parámos o vento
Não sabemos nadar
E morremos, morremos
Devagar, devagar!"
Este poema, decididamente dos melhores na retrospectiva poética de Ary dos Santos, desenvolve a temática romântica da amargura das relações amorosas, chorando, na música do Fado, a incapacidade humana de ser tão fortes quanto é a exigência por parte do coração que transportamos no peito. Virão, em conjunto com o amor mas mais tardias, as lágrimas, as desventuras e a insustentabilidade que falirão a grande empresa de sentimentos que alimenta a paixão. A paixão não acabará porque ela mesma prova dos males do desejo e do amor para crescer no nosso íntimo. Estes versos são invulgarmente perfeitos, tanto mais se os escutarmos no tom celestial do canto de Amália, e têm-me feito, nestes últimos instantes, amar a poesia com maior ardor que nos dias que têm passado. E é esta capacidade de transcender aquilo que é maior que nos próprios que me arrepia.
Declarações aparte, retiro-me com a promessa de que este artigo me fez ir, de imediato, dedicar-me à poesia. Talvez o Sol e as felicidades que me têm vitimado tragam alguma novidade às linhas que se seguem, vindas destas mãos.