segunda-feira, março 30

Literatura: No Ar(y) com os Santos

A personalidade que me ocorre presentemente tratar neste espaço, pela ordem que antes estabeleci, é um grande poeta do século que já passou, nascido em 1937 e que viveu somente 47 anos. Nos séculos anteriores, sabemos todos que muitos grandes artistas, entre muitas outras pessoas, eram levados muito cedo, abalados por pestes ou por causas de morte daquelas que se consideram naturais, como se a morte muitas vezes não o fosse... Não há nada mais natural que a morte, meus caros: é provável que não sejamos felizes na vida, é provável que não vejamos materializados os nossos mais elevados sonhos, as nossas mais queridas ambições, é provável que não vejamos formar-se diante de nós e por nós a família que desenhámos com a vontade de cada um, mas é certo e concreto que todos morreremos um dia (que felizmente ainda não chegou). De tal modo que este poeta nos transporta quase a esses tempos mais remotos, quando o verdadeiro artista de mérito fechava os seus olhos à continuidade muito jovem, deixando apenas uma obra que viverá o tempo que este deixou. José Carlos Ary dos Santos deixou-a escrita, a sua obra de mais de 600 poemas redigidos acerca dos mais variados temas e para os mais distintos efeitos.

Ary dos Santos, como era simplesmente conhecido e tratado no seio do mundo artístico em que era uma referência, nasceu numa família burguesa de muito largas posses. O talento e a genialidade não escolhem berço; não andam vagueando nos leitos das crianças a buscar uma alma carenciada, para à ausência de orçamento familiar serem acrescentadas as angústias do coração. Antes, como se prevê, o mérito surge do trabalho feito por quem quer que o elabore: funciona o talento como um pobre mendigo faminto: este último quer ver a sua fome satisfeita, seja com um pedaço de pão bolorento, seja com o perfeito manjar do Olimpo da deusa Vénus; ao outro, interessa perceber o trabalho efectuado, não que o realize um indivíduo pobre ou um indivíduo rico. Contudo, as ambições de Ary dos Santos, ao que nos parece, diferenciavam do que se lhe propunha. Aos 16 anos, se o fez por vontade própria, deixou a residência da família e buscou uma forma de se sustentar sem a ajuda exterior: trabalhou nas mais diversas áreas, chegando a acumular empregos. Se o fez por força parental, por algum erro que cometeu ou por disputa familiar, então o caso aparece bem mais complicado de analisar. Se o entendermos, com efeito, como uma consequência de um acto ponderado do nosso poeta, podemos, por tal via, deduzir que o dinheiro não lhe causava um interesse tão grande como a sua dedicação às letras e à sua vida sozinho. De resto, é muito possível afirmar que esta sua decisão precoce favoreceu a sua criação literária: fê-lo crescer por necessidade, acrescendo-lhe à vida uma série de responsabilidades e um tipo de regime que, conciliados, induziram positivamente à criação poética que nos faz recordá-lo hoje.

Sabe-se que aos 14 anos, porém, já escrevia, tendo sido publicados os seus primeiros poemas, característicos de uma infância normal, que o próprio autor considerava de fraca qualidade. A Liturgia de Sangue é a sua efectiva estreia no difícil e injusto mundo literário, livro que foi publicado em 1963. Em toda a sua vida, após e antes esta redacção, Ary dos Santos nunca pôs a sua actividade artística de lado. Haveria de se notabilizar como poeta, mas também como um grande orador e declamador de poesia, gravando mesmo alguns discos, como Ary por si próprio e poesia política. A sua convicção política, aproveito para dizer, não fugia ao habitual deste século, apoiando o Partido Comunista (o que mostra mais uma vez as razões que o podem ter afastado do percurso que a história da sua família propunha para o seu futuro).

A sua obra mais significativa dirigia-se para um conceito muito concreto de poesia: escrevia os seus poemas para que estes fossem interpretados pelas mais diferentes vozes, desde o fado às grandes actuações portuguesas do Festival da Canção. Duas das canções que escreveu, Desfolhada Portuguesa e Tourada, saíram vencedoras do festival. O grande reconhecimento de Ary dos Santos viria mesmo como efeito destas suas obras que se popularizaram na voz de Simone de Oliveira e Fernando Tordo. Para Amália Rodrigues também escreveu vários poemas, como É da Torre mais Alta e Meu Amor, Meu Amor, que seguidamente exponho.

"Meu amor, meu amor
Meu corpo em movimento
Minha voz à procura
Do seu próprio lamento
Meu limão de amargura
Meu punhal a crescer:
Nós parámos o tempo
Não sabemos morrer
E nascemos, nascemos
Do nosso entristecer!

Meu amor, meu amor
Meu pássaro cinzento
A chorar a lonjura
Do nosso afastamento.
Meu amor, meu amor
Meu nó de sofrimento
Minha mó de ternura
Minha nau de tormento:
Este mar não tem cura
Este céu não tem ar
Nós parámos o vento
Não sabemos nadar
E morremos, morremos
Devagar, devagar!"

Este poema, decididamente dos melhores na retrospectiva poética de Ary dos Santos, desenvolve a temática romântica da amargura das relações amorosas, chorando, na música do Fado, a incapacidade humana de ser tão fortes quanto é a exigência por parte do coração que transportamos no peito. Virão, em conjunto com o amor mas mais tardias, as lágrimas, as desventuras e a insustentabilidade que falirão a grande empresa de sentimentos que alimenta a paixão. A paixão não acabará porque ela mesma prova dos males do desejo e do amor para crescer no nosso íntimo. Estes versos são invulgarmente perfeitos, tanto mais se os escutarmos no tom celestial do canto de Amália, e têm-me feito, nestes últimos instantes, amar a poesia com maior ardor que nos dias que têm passado. E é esta capacidade de transcender aquilo que é maior que nos próprios que me arrepia.

Declarações aparte, retiro-me com a promessa de que este artigo me fez ir, de imediato, dedicar-me à poesia. Talvez o Sol e as felicidades que me têm vitimado tragam alguma novidade às linhas que se seguem, vindas destas mãos.

domingo, março 29

Música: Três "Variações" pelo Pop/Rock Lusitano

Como é possível que uma carreira tão curta, em termos temporais, tenha dado tanto a Portugal e à sua evolução musical para o futuro? Ninguém sabe dizê-lo, visto que a magia das canções de António Variações é apenas decifrável em sentimentos, e não em palavras.
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António Variações é a fonte deste rio que hoje corre pelas rádios nacionais, e por todos os locais onde se ouve música portuguesa moderna, ou seja, sem deixar o tradicional (a sua inspiração era Amália Rodrigues!), e criando novos rumos para as notas musicais, e arranjamentos instrumentais, Variações definiu muito do que é o pop português do momento e dos últimos anos, influenciando uma grande parte dos cantores e bandas portuguesas da actualidade, que se inspiram no seu estilo único para criar música original, cantada em português, mas com um grande sentido internacional (leia-se, exportação e divulgação da música portuguesa lá fora).
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As músicas deste "bicho do pop", incompreendido por muitos e extremamente subvalorizado, constam na memória de muitos portugueses, sendo que quase ninguém pode afirmar que desconhece estas três canções abaixo apresentadas:
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"Estou Além" transborda o conceito de insatisfação humana, uma vez que nós, seres viventes racionais, queremos sempre mais, e pedimos o que não temos e o que é impossível ou difícil de alcançar. Esta música fala ainda da busca inecessante pela felicidade e vida perfeita, procurando cada um o "seu mundo, o seu lugar", isto é, um emprego decente, uma família estável, dinheiro para viagens e divertimentos, fama, sucesso... Ouçamos a música.
Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P'ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão
Vou continuar a procurar a quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só
Quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar
Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar
Porque até aqui eu só
Estou bem
Aonde não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
Porque eu só quero ir
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
***
"É p'ra Amanhã" é outro dos grandes sucessos do eterno cabeleireiro da baixa lisboeta. O tema é claramente inspirado num dos hábitos típicos da maioria lusitana...o adiamento, ou deixar para depois. A canção alerta ainda para os perigos de adiar coisas tão importantes, como quase todos fazemos todos os dias, porque "amanhã" podemos já cá não estar. Assim, mostra-nos que devemos fazer tudo o que temos de importante a fazer, sem que esperemos por depois. Podemos associar a mensagem da letra à ideologia do "Carpe Diem".


É p'ra amanhã
Bem podias fazer hoje
Porque amanhã sei que voltas a adiar
E tu bem sabes como o tempo foge
Mas nada fazes para o agarrar
Foi mais um dia e tu nada fizeste
Um dia a mais tu pensas que nao faz mal
Vem outro dia e tudo se repete
E vais deixando ficar tudo igual
É p'ra amanhã
Bem podias viver hoje
Porque amanhã quem sabe se vais cá estar
Ai tu bem sabes como a vida foge
Mesmo que penses que está p'ra durar
Foi mais um dia e tu nada viveste
Deixas passar os dias sempre iguais
Quando pensares no tempo que perdeste
Então tu queres mas é tarde demais
É p'ra amanhã
Deixa lá nao faças hoje
Porque amanhã tudo se há-de arranjar
Ai tu bem sabes que o trabalho foge
Mesmo de quem diz que quer trabalhar
Eu sei que tu andas a procurar
Esse lugar que acerte bem contigo
Do que aparece não consegues gostar
E do que gostas já está preenchido.
***
Por fim, "O Corpo é que Paga" pode ser escutado de várias perspectivas, uma menos abrangente e mais particular, e uma outra geral. Primeiramente, a ideia de que todo o tipo de substâncias alheias ao corpo que possam causar prazer e danos, como as drogas, ou mesmo o sexo sem protecção, que pode ter o mesmo efeito de prazer imediato, mas problemas mais tarde (doenças venéreas, como a SIDA que, ironicamente, matou Variações); devem ser evitados, porque mesmo que nos saiba muito bem no momento, poder-nos-à fazer sofrer no futuro, ou mesmo matar. Quanto ao ponto de vista geral, podemos concluir, ouvindo esta canção, que temos de ter cuidados com tudo o que nos dá prazer, que em vez de nos trazerem a felicidade, são demónios do mundo disfarçados de anjos, sendo que cabe à cabeça tomar a decisão de não ceder a estas tentações que matarão o corpo. Assim, se a cabeça tiver juízo, o corpo não pagará.
Quando a cabeça não tem juizo
Quando te esforças mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Deixa´ó pagar deixa´ó pagar
Se tu estás a gostar
Quando a cabeça não se liberta
Das frustações inibições toda essa força
Que te aperta o corpo é que sofre
As privações mutilações (lap tap tere ...)
Quando a cabeça está convencida
De que ela é a oitava maravilha
O corpo é que sofre
O corpo é que sofre
Deixa´ó sofrer deixa´ó sofre
Se isso te dá prazer
Quando a cabeça está nessa confusão
Já sem saber que hás-de fazer,
E ingeres tudo o que te vem à mão
O corpo é que fica
Fica a cair sem resistir (lap tap tere ...)
Quando a cabeça rola pro abismo
Tu não controlas esse nervosismo
A unha é que paga
A unha é que paga
Não paras de roer
Nem que esteja a doer
Quando a cabeça não tem juizo
E tu não sabes mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Deixa´ó pagar deixa´ó pagar
Se tu estás a gostar
Deixa´ó sofrer deixa´ó sofrer
Se isso te dá prazer
Deixa´ó cantar deixa´ó cantar
Se tu estás a gostar
Deixa´ó beijar deixa´ó beijar
Se tu estás a gostar
Deixa´ó gritar deixa´ó gritar
Se tu estás a libertar
***
Este artigo é dedicado ao meu caro e ex-professor Miguel Bagorro,
que me fez ouvir Variações com ouvidos de ouvir, pela primeira vez.

sábado, março 28

Cinema: Sonhar

Hoje e no meu próximo artigo irei apresentar-vos filmes dos anos 50. Os dois filmes deste artigo são “Saltimbancos”, de Manuel Guimarães e “Sonhar é Fácil” de Perdigão Queiroga.

"Saltimbancos"

Sinopse:
O universo do Circo Maravilhas – triste, pequeno, miserável e decadente. Onde os velhos acrobatas e a coragem dos novos trapezistas, a companheirismo e afecto atravessa o horizonte rumo à esperança inextinguível.











Curiosidades:
Filme de Manuel Guimarães, de 1951.
Com a participação de Maria Olguim (Miss Dollly), Helga Liné (Delmirinha), Artur Semedo (Tony), José Victor (Felismino), Manuel Correris (Adriani), Jaime Zenéglio (Jesuíno) e Fernando Gusmão (Chico).
É uma adaptação do romance neo-realista de Leão Penedo “O Circo”.
Recebeu um prémio do Serviço Nacional de Informação para Melhor Fotografia de Salazar Dinis.
Apesar dos poucos apoios financeiros e algumas fraquezas, Manuel Guimarães demonstrava a sua verdadeira paixão pelo cinema dedicando-se então a “Saltimbancos”.
Estreou no cinema Eden a 25 de Janeiro de 1952, com pouca adesão do público.

“Sonhar é Fácil”
Sinopse:
A família Silve anseia ter a sua própria casa. O seu sonho torna-se possível quando uma tia lhes deixa uma herança. Contudo o destino altera os seus projectos e mudando o seu caminho.



Curiosidades:
Filme de Perdigão Queiroga de 1952.
Com a participação de António Silva (Silva), Laura Alves (Rosinha), Manuel Santos Carvalho (Guimarães), Emílio Correia (Tomé), Eugénio Salvador (Periquito), Maria Emília Vilas/Marimaília (Matilde), Maria Olguim (Adelaide); Vasco Morgado (João), Augusto Fraga (Dr. Aires) e Artur Agostinho (Dr. Cerqueira).

Neste filme é explorado o realismo populista.
Laura Alves, mesmo no seu papel secundário, destaca o seu imenso talento. E junto dela brilha também o talentoso António Silva.

segunda-feira, março 23

Literatura: O meu amor ao povo e o de Pedro Homem de Melo

Não sei já pedir que no mundo haja saúde e que o bem exista mesmo no ar que se faz vento sobre nós; não sei já pedir que essa saúde nos cale os dissabores que são feitos da fuga comprometida de um sorriso. Mas peço que esse sorriso, contra qualquer tendência que no seu sentido aponte menos, surja com a frequência de um minuto, de uma hora, e que em todos eles eu possa olhar e observá-lo não apenas na face daqueles que assumidamente adoro e a quem dedico a minha vida, mas de igual maneira sob os olhos dos indivíduos que contra mim possam apregoar, que sei existirem talvez mais do que os anteriores... É a minha dor de certas horas e o meu orgulho de vida inteira: gostar do que há, por haver; sonhar ainda assim, pelo que hei-de amar por existir num dia que esteja para chegar. E se questionarem o propósito de vos pedir tamanha felicidade que vos faça sorrir, no âmbito de um artigo que sou quase forçado a escrever, não me julguem também o génio de desejar o bem simplesmente por estratégia de prosador, pois este desejo é de mim, vem de mim, vem deste coração e não das mãos que o escrevem. O artigo vem a seguir.

Esta semana trago até vós outro grande poeta da canção nacional, e homem é ele, mais do que pelo seu nome que o diz já: Pedro Homem de Melo. Com efeito, há daqueles homens que, pela família e seu nome, nasceram para ser homens de "h" grande. E este nosso bom poeta portuense acabaria vivendo tantos anos quantos a grande diva que lhe deu voz aos poemas: Amália Rodrigues, que faleceu meses antes de completar as oito décadas de existência. Tem interesse e chama o fascínio quando somos levados a reflectir sobre a memória dos grandes artistas. Havia vida antes deles, pessoas nasciam, viviam e esperavam a morte que lhes viesse quebrar os projectos que eram mantidos à mercê da fortuna dos mais afortunados ou do azar de muitos outros. E nessa vida podia haver alguma felicidade, ou pouca, ou toda a que se viria a registar a posteriori. Mas os artistas nascem e, quando a morte lhes leva, e a nós, a sua capacidade de criar arte ou de transmiti-la, não são votados ao esquecimento seguro como o são todas as outras pessoas que não dedicaram os seus anos a uma obra ou a uma causa de mérito próprio. E após eles, algo na vida de todos foi deixado por essa pessoa, entrando em nós por algo acessório ao movimento físico. Os artistas verdadeiros passam pela vida para deixar o que não lhes irá permitir a morte inteira, mas apenas do seu corpo, que se sumirá enquanto veremos a memória perdurar! Talvez haja artistas permanentemente deprimidos, e mesmo eu não consigo descobrir nisso uma acertada escolha ou compromisso... contudo, restará a todos saber que vida é preferível se a outra se assume como alternativa à qual nos podemos remeter todos os dias.

Não sei também, e hoje pareço saber muito pouco ou então entendo-o simplesmente hoje, se Pedro Homem de Melo já saberia da imortalidade de que o seu nome goza nos dias que correm, ou se para a alcançar foi que confiou à maravilhosa voz de Amália a sua arte em verso. E dos poemas que a diva do Fado cantou cujo poema proveio do pensamento e das veias deste poeta, refiro Havemos de ir a Viana, Cuidei que Tinhas Morrido e o sempre recordado Povo Que Lavas no Rio, que para mim é mais do que música e que o sabem os que me conhecem.

"Povo que lavas no rio,
que talhas com o teu machado
as tábuas de meu caixão,
pode haver quem te defenda,
quem compre o teu chão sagrado,
mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda,
beber em malga que esconda
o beijo de mão em mão;
era o vinho que me deste
água pura, fruto agreste,
mas a tua vida não.

Aromas de urze e de lama,
dormi com eles na cama,
tive a mesma condição;
povo, povo, eu te pertenço,
deste-me alturas de incenso,
mas a tua vida não."

Neste poema, Pedro Homem de Melo canta a um dos seus amores: o povo português, as suas tradições e especificidades. O amor ao país fazia dele um apaixonado pelo património folclórico que nos pertence e que enriquece a cultura das diferentes regiões portuguesas. Dedicou muito da sua obra à concepção de poemas para canções populares. E o povo acarinhava-o, sabia encontrar nele quem o amasse como um igual. De resto, e por trás das suas variadas dedicações que pudesse reservar, era um licenciado em direito pela faculdade de Coimbra, onde chegou a contactar com o movimento da revista Presença, do qual fazia parte, entre outros, o já muito mencionado José Régio. E uma vez que não vos dei ainda o conhecimento da altura do nascimento deste poeta de hoje, estas suas relações são o único testemunho que têm para induzir algum dado. Mas não o precisam fazer, pois sois o povo e sou, também eu, um amante de tudo o que sois. Pedro Homem de Melo nasceu no Norte do país em Setembro de 1904, vindo a deixar-nos em 1984, junto ao início da Primavera.

Sou pouco afecto a boatos ou especulações de qualquer ordem. Porém, ocorre-me dizer que, segundo alguns dados que me foram dados a interpretar, Homem de Melo era, muito provavelmente, apoiante do regime de António de Oliveira Salazar. Há uns poucos de dias murmurei, como um desabafo que se faz na regularidade dos costumes, na presença do meu melhor amigo, que pareciam ser todos os grandes escritores portugueses do século XX ligados à ideologia comunista. Perante esta realidade terei de me resguardar mais no que toca a pensamentos generalistas. Muitos de vós serão do conhecimento das minhas convicções políticas e da amargura que me corrompe ao nome de Salazar e todo este ódio que, pela sua envergadura, chega a ser crime: ainda assim parecendo, e por isso, surpreendi-me a mim mesmo por não odiar, de um momento para o outro, quem foi este poeta. Na verdade, compreendo hoje, mais do que há uns tempos, que uma pessoa não se define somente pela ideologia que acredita ser viável para o desenvolvimento promissor de uma sociedade e de uma economia. Conhecendo a dedicação do regime Salazarista à manutenção de tantas tradições regionais, ganhei a noção de que coexistem sempre duas, ou mais, perspectivas do mesmo assunto. Neste caso em particular, o povo era defendido pelas ideias marxistas por estabelecerem o poder de decisão nas mãos dos trabalhadores, e era também defendido pelo Salazarismo na medida em que este pretendia reunir esforços para o apoio da vida rural e das comunidades menos ligadas à urbanização. Continuo a desgostar bastante de gente que queira trazer de volta os maus tempos que mataram pessoas do meu país e continuo a sonhar com a Revolução de Abril que não matou ninguém, mas não retiro o mérito ao Salazarismo pela sua política de defesa do património folclórico e das tradições que só enriquecem este nosso canto da Europa.

E assim finalizo este artigo, talvez mais de temas subjacentes do que de biografia. E deixo a promessa de vos escrever sobre Ary dos Santos, na próxima semana, e ainda o pedido reformulado: sejam felizes!

Arte Popular: Artesanato Portugues (Barro)

O barro é um dos materiais preferidos pelos artesãos.
Desde tempos imemoriais que é conhecido, recolhido como documento, trabalhado como arte ou com funcionalidade prática. Não importa como, ele revela sempre as remotas influências romana e árabe. O sabor especial que o barro novo confere à água, levou à criação de toda a espécie de bilhas. Daí a passar para mão criativa do artesão foi um passo. O nosso olhar passeia-se maravilhado com a arte e engenho de gente anónima que cria pela necessidade de reter o seu imaginário.
1. Preparação da Pasta:
A argila é cavada nas barreiras e transportada em carroças para as diversas olarias. Assim, num ambiente húmido, lamacento e fraca iluminação, começa a preparação do barro.
O processo utilizado pelos oleiros é o tradicional, bastante rudimentar.
O barro é exposto ao sol para que se possa partir mais facilmente em pequenos bocados. Sobre a argila partida é deitada água, de preferência com um regador, para que esta seja totalmente absorvida. É usual fazer-se esta operação ao fim do dia, para que durante a noite o barro vá amolecendo. Seguidamente, o barro é amassado com a mão e colocado num monte. O oleiro sobe para ele e, colocando um pé ao centro, servindo de apoio, roda no sentido dos ponteiros do relógio, esmagando os bordos com o calcanhar, que progressivamente se vai enterrando.
Logo que a espessura do barro atinge 5 cm aproximadamente, o oleiro dá por terminada esta fase do trabalho. Passa de seguida à detecção de impurezas e corpos estranhos, utilizando para o efeito a sua própria mão que faz passar por pequenos blocos de barro. Todo este trabalho de preparação do barro demora cerca de hora e meia, e a partir desta última operação o barro está pronto a ser trabalhado na roda.
2. A Roda:
A roda mais antiga, e a mais simples, é denominada roda baixa, movida com a mão. Este tipo de roda, era utilizado em muitas regiões de Portugal, principalmente no Norte do País. Não há vestígios de rodas deste tipo primitivo no Alto Alentejo. Os oleiros alentejanos utilizam outro tipo de roda, mais alta, accionada com o pé e de origem árabe.
A roda é o principal utensílio do oleiro. Está montada numa espécie de mesa denominada «arquina», onde é colocada uma placa de madeira, uma tigela com água e os blocos de barro.
É difícil trabalhar na roda, exige grande vocação, prática e perseverança, para se conseguir uma sincronização perfeita entre os pés e as mãos. O pé imprime o movimento e controla a velocidade, enquanto as mãos vão transformar o bloco de barro, colocado sobre a roda, subindo-o, alargando-o, até se tingir a forma final que o mestre idealizou. Cortando a peça pela base com o fio ou arame, a peça é retirada e colocada numa placa de madeira.
As peças, depois de moldadas, ficam a secar em prateleiras ou no chão, de maneira a ficarem apenas com 7 a 10% de humidade; só depois podem ir a cozer. O tempo de secagem é variável, dependendo de vários factores: espessura da peça, condições das instalações e condições atmosféricas.
3. Os Fornos:
Podemos dividi-los nas seguintes partes: caixa, boca, caldeira e arcos.
As peças ao serem colocadas no forno, têm de obedecer a uma técnica apurada, de maneira a que o fogo seja distribuído de modo igual para todas elas.
A lenha é introduzida lentamente (duas a quatro horas), evitando-se assim a mudança brusca de temperaturas, que poderia ocasionar que todas as peças se quebrassem.
O tempo de cozedura é variado, dependendo da posição das peças no forno, da qualidade e da quantidade de lenha. Normalmente a cozedura é feita durante a noite, pois este tipo de fornos não tem qualquer indicador de temperatura, tendo o oleiro que espreitar a cor das peças, através de uma vigia para saber se já estão cozidas, colocando, no caso da cozedura ainda não estar acabada, mais lenha sobre as peças mais cruas.

domingo, março 22

Música : A Voz da Revolução (aprendamos História…)

Em 1929, ano da crise mundial do capitalismo, nasce um dos maiores símbolos da canção portuguesa e expoente máximo da música de intervenção. O seu nome é José Afonso, ou Zeca Afonso (como preferirem), e passou parte da sua infância em África, com os familiares de Angola ou Moçambique. Porém, é quando volta a Aveiro, terra de nascença, aos 9 anos de idade, que José Afonso se confronta pela primeira vez com os males do regime que viria a combater pelas cantigas, uma vez que viria viver com o tio Filomeno, presidente de Belmonte, onde se vivia o período mais profundo do Salazarismo. Além de que o tio era pró-franquista e pró-hitleriano, levando-o a envergar a farda da Mocidade Portuguesa. Nos finais da sua vida, Zeca Afonso confidenciou que estou foi o período mais desgraçado da sua existência, uma vez que, desde pequeno, que José Afonso não se integrava bem no regime em vigor.

José Afonso começa a dar a sua voz a conhecer por volta do quinto ano do Liceu D.João III, e a sua voz começa a ecoar pela cidade velha, dando-lhe fama, entre os tradicionalistas, de “bicho que canta bem”. Chega a Coimbra, passo importante para a vida e carreira do homem com Liberdade na voz. Nas colectividades conhece “gajos populares” e tocadores de guitarra, como Flávio Rodrigues, sendo que começa a acompanhar a tradição da música coimbrã, tocando em serenatas e “festarolas de aldeia”, sendo as segundas actuações pagas em farnel. O fado de Coimbra lírico e tradicional era superiormente interpretado por si. A praxe académica e a boémia encheu-lhe tardes e noites gloriosamente Coimbrãs, ficando envolvido pela lenda coimbrã, com o encantamento das suas tradições, que o tanto atraiam.

Em 1958 José Afonso grava o seu primeiro disco "Baladas de Coimbra" enquanto acompanha o movimento em torno da candidatura presidencial de Humberto Delgado. E é nesta altura que a sua música começa a ganhar uma dimensão política, em particular aquando da gravação de “Os Vampiros”. que, juntamente com "Trova do Vento que Passa", escrita por Manuel Alegre e cantada por Adriano Correia de Oliveira, constituem um marco fundamental da canção de intervenção e de resistência antifascista. “Os Vampiros” em particular possuem versos explicitamente desagradados com a situação política vivida no país (“Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada!”)


Em 1964 parte para Moçambique. Professor de liceu, desenvolve uma intensa actividade política contra o colonialismo, o que lhe traz problemas com a PIDE e com a administração colonial. Mais tarde regressa a Portugal onde é colocado como professor em Setúbal, mas posteriormente é expulso do ensino. Para sobreviver dá explicações e grava o seu primeiro LP, "Baladas e Canções".

Em 1967-70, Zeca protagoniza uma intervenção política e musical ímpar, convertendo-se num símbolo da resistência. Várias vezes detido pla PIDE, mantém contactos com a Luar, PCP e esquerda radical. Em 69 participa no 1o Encontro da "Chanson Portugaise de Combat" em Paris e empenha-se fortemente na eleição de deputados à Assembleia Nacional da CDE de Setúbal, gravando também o LP "Cantares do Andarilho", recebendo o prémio da Casa da Imprensa pelo melhor disco do ano, e o prémio da melhor interpretação. Alvo de censura José Afonso passa a ser tratado nos jornais por Esoj Osnofa!


Com os arranjos de José Mário Branco, em 1971, edita "Cantigas do Maio”, Neste álbum surge "Grândola Vila Morena" que se tornará um símbolo da revolução de Abril. Desde então Zeca participa em vários festivais. Em 1973 canta no III Congresso da Oposição Democrática e grava "Venham mais cinco".


E é após a mini-biografia, que quero fazer esta pequeníssima reflexão. Zeca Afonso é mais que um cantor, mais que um simples intérprete. Ele e a sua obra encerram em si uma mensagem subliminar, um grito de revolta com o que estava mal. José Afonso é importante, portanto a dois níveis. Importante como representante popular, e importante como arma.
Isto é, em primeiro lugar José Afonso é o símbolo do sentimento de descontentamento da época, de longe um descontentamento mais grave, profundo e fundamentado que o típico descontentamento que hoje em dia corre nas ruas de Portugal. A voz de “Venham mais cinco” representa os descontentes a sério, e os verdadeiros sofredores, que datam da época do Estado Novo. Aqueles que não eram livres, e que não podiam dizer mais do que era politicamente correcto (literalmente). E toda insatisfação traduz-se nas suas composições e letras, criando verdadeiros memorandos do ambiente ditatorial, letras que nos relembram que não estamos tal mal assim, no nosso hoje, e que nos levam a valorizar algo que temos, mas a ninguém agradecemos (nem aos que por ela lutaram)…a liberdade. Sim, porque as vozes eram emudecidas, e não se podia ser contra o que Portugal era. E é neste ponto que a obra de José Afonso é importante, pois que reflecte uma época da nossa história, melhor que qualquer documento oficial (apenas os depoimentos de quem viveu na altura igualam o testemunho negro destas canções).

Mas além de um lamento queixoso, as canções de José Afonso surgem com outra importância. A importância de serem arma numa revolução sem sangue, sendo a sua música, a par dos cravos, o símbolo de Abril e da luta dos povos. Aliás, as próprias canções em si são uma arma, que influencia a mentalidade dos mais atentos à letra (e ao sentimento, está claro), e os incentiva à revolta contra o regime estabelecido. Ou seja, uma vez que as canções espelham a realidade negra, consciencializam os ouvintes e fazem-nos participar neste projecto anti-fascista. Além de que até uma canção de José Afonso foi senha na Revolução dos Cravos, comprovando a sua importância enquanto arma político-social. Se bem que podem entender melhor o conceito de cantiga=arma ouvindo a seguinte música:


Assim sendo, a obra de José Afonso assume um valor histórico incomparável, sendo o expoente máximo da necessária e útil (não apenas estética, como o nacional-cançonetismo) música de intervenção.






sábado, março 21

Cinema: "Camões" e "Leão da Estrela"

Hoje irei apresentar-vos dois filmes de estilos muito diferentes. O primeiro talvez nem todos, ou muito poucas pessoas, conheçam “Camões” de José Leitão de Barros. Já o segundo é conhecido pelo grande público, “Leão da Estrela” de Arthur Duarte.


“Camões”


Sinopse:
São apresentados os marcos mais importantes da vida de Luís Vaz de Camões (António Vilar), o grande poeta épico. Desde os tempos tempestuosos em Coimbra até aos amores contrariados. Passando pela leitura dos “Lusíadas” a D. Sebastião e pelo desastre de Alcácer-Quibir.
Curiosidades:
Filme de José Leitão de Barros, no ano de 1946.
O seu título original era “Camões, o Trinca-Fortes” e foi como homenagem a António Lopes Vieira (1878-1946).
Foi considerado de interesse internacional pelo próprio António Salazar.
Foi o primeiro filme português a ser seleccionado para o Festival de Cannes, em Outubro 1946 (a sua primeira edição). O filme foi exibido sem legendas enquanto um tradutor ia explicando o desenrolar da história.
“Camões” estreou no teatro São Luíz a 23 de Setembro de 1946. Esteve apenas 8 semanas em cartaz e foi visto por 80 mil espectadores. Apesar dos elevados custos de produção, comercialmente o filme “Camões” foi uma decepção. Contudo, foi considerado pela crítica da época “o melhor filme de todos os tempos”.
Recebeu os seguintes prémios atribuídos pelo Secretariado Nacional de Informação: Grande Prémio do SNI em 1946; Prémio SNI para Melhor Actor: António Vilar; Prémio SNI para a Melhor Actriz: Eunice Muñuz; e Menções honrosas a Vasco Santana e Piava Raposo.


“Leão da Estrela”


Sinopse:
António (António Silva), pai de Jújú (Milú) e Branca (Maria Eugénia), é um adepto ferrenho do Sporting e anseia ir ver o grande jogo entre o seu clube e o Porto, na cidade Invicta, aproveitando para ficar na casa dos amigos Barata (Eurico Braga – Sr. Barata e Cremilda de Oliveira – Sra. Barata), que são ricos e cujo filho (Fernando Curado Ribeiro – Eduardo) troca cartas com Jújú. Durante a estadia, Anastácio faz-se passar por um homem muito viajado e da mesma condição social da família Barata. Mas tudo se complica quando a família Barata lhes dá a notícia de os irem visitar a Lisboa, após Eduardo e Branca se apaixonarem e a propósito do noivado.


Curiosidades:
Filme de Arthur Duarte, no ano 1947.
Neste filme vemos grandes actores como António Silva, Milú e Eurico Braga em grandes personagens.
Considerado um dos melhores filmes de Arthur Duarte e um filme de referência do cinema português na sua época de Ouro.

quinta-feira, março 19

Pintura: "O Sr. Júlio"

Na continuidade do plano que tinha previsto para os meus artigos de blog, nesta e na próxima semana falar-vos-ei do pintor Júlio Carmo Santos. Estes dois artigos terão o mesmo propósito que aqueles que fiz sobre a pintora Paula Rego, nas semanas anteriores. Assim o primeiro artigo, o de hoje, será de carácter biográfico, e o segundo artigo, o da próxima semana, consistirá numa reflexão sobre a importância dos artistas do nosso concelho e sobre a relação pintor – público que se consolida, por exemplo, através de aulas de pintura para comunidade. Esta reflexão deve-se ao facto de Júlio Carmo Santos ser meu professor de pintura há vários anos, e também à exposição que o nosso grupo está a realizar (nesta e na próxima semana) sobre a arte na década de 90, onde eu abordo esta relação referindo a divulgação de museus e a de espaços onde qualquer elemento da comunidade pode aprender e entender a pintura.

Júlio Carmo Santos, mestre e pintor, nasceu em Alenquer a 1941, e define-se como aguarelista, figurativo e impressionista.

Apesar de não ter conhecido o seu avô materno, que era caricaturista e aguarelista, o gosto e o engenho para o desenho ficaram nos genes e desde muito cedo que manifestou esta tendência, aliás, antes de saber ler, escrever ou contar já esboçava as paisagens que via.
O seu primeiro mestre foi Duarte D’Almeida, que reparou nas capacidades do pintor, e por volta de 1951 Carmo Santos ingressou na Casa Pia de Lisboa, por parecer a hipótese mais sensata devido à sua condição de órfão de pai. Foi nesta instituição que recebeu a formação em vários ofícios, destacando-se a modelação e pintura orientada pelo Mestre Martins Correia, a função de bate-chapas, serralheiro e encadernador. Mais tarde frequentou as oficinas de S. José onde aprendeu desenho industrial e terminou na Fundação Ricardo Espírito Santo, como desenhador imobiliário.

Como o trabalho de pintor só por si não sustenta uma família, Carmo Santos teve vários empregos, maquetista, ilustrador gráfico, criativo em agências de publicidade, que, de uma maneira ou de outra, estiveram sempre relacionados ao desenho e à pintura.

Na década de 90 o pintor instala-se em Alverca onde dedica-se inteiramente ao projecto cultural da cidade, e em 1992 criou um espaço de formação artística na Sociedade Filarmónica de Recreio Alverquense (SFRA) por onde já passaram imensos alunos.
Júlio Carmo Santos foi o fundador e primeiro presidente do GART – Grupo de Artistas Amigos da Arte, um projecto que tem vindo a evoluir contando com cada vez mais intervenções em conjunto com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
Com 68 anos, Júlio Carmo Santos continua a pintar e a ensinar com a mesma vivacidade a que nos habituou.


ANEXO

«Arquivo: Edição de 04-12-2008

O mestre dos sete ofícios

Foi o primeiro presidente do Grupo de Artistas e Amigos da Arte (GART) e o seu nome é, para muitos, sinónimo de mestria. Aos quatro anos Júlio Carmo Santos já rabiscava umas paisagens no papel. Aos 67 continua de pincéis e tintas na mão. Mas com a técnica mais amadurecida. História de um homem que se fez mestre de gerações de ribatejanos. E que um dia sonhou ser padre e toureiro.
O seu primeiro grande mestre poderia ter sido o avô materno que, além de conservador do Registo Civil de Alenquer, era caricaturista e aguarelista. Mas o pintor Júlio Carmo Santos, residente em Alverca, teve a pouca sorte de não ter conhecido a pessoa que lhe assinou a cédula de nascimento. Todavia ficou-lhe nos genes a queda para os rabiscos no papel.
Muito antes de conhecer os números e as letras já Júlio Carmo Santos, hoje com 67 anos, misturava as cores no papel. Desenhos de paisagens que via da sua janela. Vivia em Alenquer e a sua aptidão para o desenho já era notória. Dessa altura recorda o mestre Duarte D’Almeida e os conselhos que o então presidente da Câmara Municipal de Alenquer dava à sua mãe para que o “menino” prosseguisse estudos na Escola Industrial, em Lisboa.
Júlio Carmo Santos tinha 10 anos e por ser órfão de pai a solução passou pela Casa Pia de Lisboa. Entrou na Escola de Pina Manique, experiência que recorda com agrado, apesar de nas camaratas existirem mais de 60 camas. “Lembro-me da grande cidade, íamos muito aos Jerónimos e éramos todos camaradas”. Recorda também todos os ofícios que experimentou: bate-chapas, serralheiro, mecânico, entalhador, encadernador. Foi ainda na Casa Pia que Carmo Santos se cruzou com um dos mestres que mais o marcou: o professor de Benavente e mestre em modelação, Martins Correia. Nesse tempo passou-lhe pela cabeça seguir uma carreira eclesiástica, mas houve um padre que o dissuadiu. Hoje, diz que a fé que tem é relativa. “Não nego que exista qualquer coisa de sobrenatural que nos rege, mas quantos mais anos vamos vivendo, vamos encarando a fé de outra maneira. Deus está dentro de cada um de nós”.
Da Casa Pia saltou para os Salesianos, onde a devoção era ainda mais intensa. “Mas os padres eram uns porreiros”. Nas oficinas de São José aprendeu desenho industrial que finalizou na Fundação Ricardo Espírito Santo, como desenhador mobiliário. Foi por esta altura que conheceu novas oficinas: alfaiataria, sapataria e tipografia. Teve também uma pequena experiência no teatro, onde foi colega de Manuel Cavaco, hoje actor profissional.
O primeiro emprego conseguiu-o na oficina Dallas, onde foi maquetista. Depois integrou um atelier de publicidade que lhe viria a dar acesso a Leitão de Barros, seu mestre em conhecimentos cenográficos. Saltitou de agência em agência de publicidade e pelo meio travou conhecimentos com Raquel Roque Gameiro e Tomaz de Mello, com quem colaborou na arquitectura de interiores e stands. “A verdade é que estive sempre ligado ao lápis ao papel e à tinta”.
No início da década de 90 mudou-se para Alverca e começou a dedicar-se à cidade. Conheceu Adriano Gabriel que o puxou para os corpos directivos da Filarmónica Alverquense. Em 1992 criou uma ala de formação de pintura artística na Filarmónica. Começou a ensinar desenho e pintura. De lá para cá já lhe passaram pelas mãos quase uma centena de pessoas. “Chamam-me mestre e eu costumo dizer que sou o mestre dos sete ofícios, por vezes palhaço, e gosto”, exclama.
Júlio Carmo Santos define-se como aguarelista, figurativo e impressionista. “Os meus temas roçam quase sempre os assuntos das paisagens rurais e também gosto do retrato”. Gosta de pintar os avieiros, a lezíria, o Tejo e a mangas do rio. De preferência quando está sol ou nevoeiro. “Um quadro para ter beleza tem de ter contrastes. Tem de ter sol ou nevoeiro, tem de ter uma impressão”. Diz que nunca pintou um comboio, mas quer faze-lo em breve. E explica que uma aguarela que demore mais de três horas a fazer já não é uma aguarela. “A aguarela tem de ser espontânea”. Tem quadros que não são negociáveis, como o “Acácio”, o seu antigo cão. “ Não o venderia nunca. Porque nunca mais o poderia desenhar. Não faço outra peça igual. O Acácio já cá não está”.
Acredita que para se ser pintor é preciso ter coragem e que a primeira lição que ensina aos seus alunos é que “devem trazer as mãos, os olhos e de preferência bom gosto” para aulas. “Não vivo da arte, mas da reforma e das aulas que dou aqui na Filarmónica. É muito difícil viver só da arte em Portugal e não falo só da pintura”, conclui. Desde 1980 que Júlio Carmo Santos tem vindo a participar em exposições colectivas e individuais, de Norte a Sul do país. Ao todo são quase uma centena. Arrecadou vários prémios e menções honrosas. Está representado no Museu João Mário de Alenquer, em várias autarquias e colecções particulares. É o co-autor do monumento ao trabalhador-rural, em Arruda dos Vinhos e do Monumento ao 25 de Abril, em Alverca.
Apreciador dos quadros clássicos e modernos

O museu preferido do pintor Júlio Carmo Santos é o Museu de Orsay, em Paris, França. Ou não fosse o mestre adorar todos os impressionistas. Desde Manet, a Cézanne, passando por Van Gogh. Também gosta dos expressionistas como Picasso “sobretudo na fase-rosa” e de Dali. Dos portugueses gosta particularmente da obra de José Malhoa, Medina, Columbano Bordalo Pinheiro e Alfredo Keill. Diz a brincar que se pudesse roubaria todos os quadros clássicos e modernos.

O mestre que também quis ser toureiro
Quando vivia em Alenquer o pintor Júlio Carmo Santos queria ser toureiro. Na escola primária o único divertimento era uma “tourinha” (uma roda de bicicleta com dois cornos à frente). Chegou mesmo a “desviar” capas vermelhas das procissões para treinar. Hoje em dia continua a gostar da festa brava, mas reconhece que já foi mais aficionado.

GART, um projecto conseguido
Júlio Carmo Santos fundou o Grupo de Artista Amigos da Arte em conjunto com Viriato Pires, José Fidalgo, Jorge Alexandre e Maria Fernanda de Alhandra. Foi o primeiro presidente desta casa e hoje julga que foi um projecto conseguido. “ Cada vez mais o GART tem vindo a intervir com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e tem sido convidado para fazer pinturas ao vivo pelo país inteiro o que é muito positivo”. »

segunda-feira, março 16

Literatura: Por trás da madeira oca do cachimbo

Muitos haveriam de dizer, se ao mérito da grande mestria de David Mourão-Ferreira fosse mais equivalente o nascimento de um reconhecimento mais profundo sobre a sua obra, que a genialidade, ou parte dela, provirá da conservação de um vício, tomado como a paz menos saudável de um espírito que se quer agradado. O fumo do cachimbo era aquele ar de um odor forte que este grande poeta do século XX apreciava que saísse de dentro de si, por sopros lentos e aguardados, esperando ver, após cada baforada apetecida, que, do mundo aparte dos Deuses, descesse ao seu pensamento uma nova criação, novos versos de magia e talento. O cachimbo, que eu sempre uni à imaginação de grandes artistas, como o hábito de beber absinto ou de procurar a solidão, era o amigo inseparável deste meu grande mestre no qual muitas vezes penso, e o qual vejo como exemplo de sobriedade inigualável a seguir com um certo orgulho. Deixava-se retratar propositadamente com o seu cachimbo, e não pensem de mim qualquer materialismo de extremos por afirmar o que seguirei a afirmar acerca dos objectos, mas que em verdade eles são, tantas e tantas vezes, melhores conselheiros que os humanos, por nos aconselharem num ambiente silencioso e de paz.

Assim como José Régio, que abordei há duas semanas, David Mourão-Ferreira, nascido em 1927, cursou Filologia Românica, embora em Lisboa. Acabaria por leccionar nessa mesma faculdade de Letras, até retirar-se e procurar viver da sua própria escrita, tanto no campo criativo, como através da publicação em periódicos. No campo jornalístico trabalhou para jornais tão diversos como A Seara Nova, Diário Popular, O Dia e A Capital. Revelou sempre, junto dos seus colegas de trabalho e mesmo de estudo, uma invulgar capacidade criativa e maturidade literária que prometia sempre surpreender o próximo. Notabilizava-se e impressionava através da crítica literária, além de que soube sempre como fazer chegar ao grande público as suas mensagens.

Este aspecto vem direccionado do último artigo que escrevi para este blogue, na semana que passou: uma infinidade de poetas do século XX buscou no Fado e na sua popularidade a oportunidade valorosa de alcançar o reconhecimento da população. Este foi um deles. Mas David Mourão-Ferreira, não que se tratasse de um manipulador ou daquilo a que vulgarmente chamamos de interesseiro, mas soube tirar partido da canção para mais facilmente intervir no pensamento comum. Isto é, todos conhecemos a capacidade única das artes em geral, e da literatura em particular, para imortalizar uma mensagem ou um pensamento, e na conjuntura cultural do Portugal de meados do século passado, quando a censura operava com tanta regularidade e limitando tanto os movimentos e ideias dos criativos, este poeta entendeu que usar o Fado, e muito especialmente Amália Rodrigues (sempre adorada pelos dirigentes políticos da ditadura), seria uma forma inteligente de, possivelmente, conseguir ir mais além na crítica, se esperto e perspicaz fosse ao fazê-lo.

E assim conseguiu: para Amália Rodrigues escreveu o poema Abandono, também conhecido hoje como Fado Peniche, em que esboça, com grande clareza, uma crítica à política salazarista de prisões e perseguições com base na opinião pessoal acerca dos caminhos que o País devia seguir.

“Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar:
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar!”

Assim se inicia o fabuloso poema. A grande crítica tem lugar nos dois primeiros versos, onde aparentemente o Poeta, na voz da Cantora, recorda quem, por seu pensamento, terminou atrás das grades, apenas ouvindo os sons solitários do vento e do mar. Esta descrição pouco precisa, mas suficiente, do espaço (do longe em que encerraram o preso) faz ainda hoje pensar que este se trata do Forte de Peniche, uma das grandes prisões do Estado Novo. Nesta primeira das três estrofes que constituem o bonito poema, a Fadista chora a tristeza de saber o seu amor desgraçado, numa agonia provavelmente maior do que a sua, que o viu partir. É a dor de uma amante que, apesar do afogo caído pelo suor de cada lágrima, não pode fazer chegar mais o seu lamento aos lábios de quem ama. E pelo resto do poema, através de uma comparação, nem sempre perceptível, entre a dor de quem partiu e de quem ficou, há-de concluir-se que quem ficou conhece umas tormentas mais graves, por um único pormenor que é lançado na primeira estrofe mas que só se entende com a última. E o poema continua assim:

“Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia!”

O significado da palavra noite está relacionado com a bruma em que esta acontece sempre que um dia acaba, e que deve ser relacionada com o tempo da solidão, da tristeza, enquanto a luz, o Sol, o dia, nos remetem para a euforia, alegria e energia. E daí que se escreva e se cante que não mais tornou a ser dia após a partida do seu amado para a prisão que não mereceu. Onde estavam antes os beijos mais ternos e quentes, está agora o vazio e o silêncio, como nos será apresentado na derradeira estrofe do poema:

“Ai dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar!
Ouço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar…
Ao menos ouves o vento,
Ao menos ouves o mar!”

Temos aqui a grande conclusão do poema, como aparecendo ele uma breve e concisa reflexão sobre a solidão forçada dos dois amantes e que promete conduzir ambos a uma loucura certa: quem ficou sofre mais por vê-lo partir, pois ouve o silêncio onde antes via amor; quem parte, tem ao seu lado o vento e o mar… Ouve, por assim dizer, as ondas e as rajadas que podem trazer sempre algo de novo, ou que simplesmente se tratam de algo novo a cada instante! Mas quem ficou, no tremendo abandono que dá o título ao poema, deixou de ouvir e de manter-se na saúde que poderia criar novas esperanças. E tudo isto cresce de beleza a cada novo verso que se apresenta, não havendo nenhum verso que não tenha sido estudado com precisão antes de ser escrito: todo o verso adiciona uma informação e é suficiente para depreender muitos outros dados através de acção simbólica ou de pura dedução que nós somos capazes de cumprir.

Resta debater o que sucedeu de tão impróprio, segundo o normal rigor que regia a censura portuguesa, para que este poema tenha sido cantado, em Portugal e no mundo, durante os tempos da ditadura. A comissão de censura, evidentemente, chamou Amália para prestar declarações e justificar-se prontamente. A Cantora defendeu-se com a beleza sublime do poema e da equivalente melodia de Alain Oulman, dizendo que se tratava de um vulgar poema de amor, sem mensagem subliminar, sobre dois amantes que viram os seus Destinos interceptados por uma força mais forte que as suas sensibilidades. A emoção da arte convenceu a censura, e fará algum sentido que assim tenha ocorrido: é este, sem dúvida nenhuma, um dos poemas mais formidáveis que Amália cantou, com uma música tão ou mais brilhante do que as próprias palavras que a seguem.

E este poema e o jogo duplo de Amália Rodrigues em relação a esta canção são hoje a demonstração de que ela, contrariamente ao que muito se argumenta, não era afecta ao fascismo e que simplesmente o mostrava ser por ela se tratar de um mecanismo que o Regime utilizava para impressionar além-fronteiras; e essa projecção importava a Amália Rodrigues, e é compreensível a todos nós. Aliás, para quem viu o filme Amália ou tenciona vê-lo ou revê-lo em breve, note no seguinte pormenor: no momento em que acusam Amália em pleno palco do Coliseu dos Recreios de apoiar o Estado Novo, ela inicia a cantar Abandono, como dizendo que todas essas acusações carecem de fundo verdadeiro, e que ela, como qualquer bom português, ansiava por uma mudança estrutural na política e sociedade portuguesas. Tal como David Mourão-Ferreira, que esteve não só por trás da madeira oca do cachimbo, mas também por trás desta mensagem de esperança e intervenção num Portugal fechado, só em aparência, a diferentes modos de pensar.

sábado, março 14

Cinema: Dois Retratos Sociais

Como vos tinha dito no meu último artigo, a partir de hoje apresento-vos filmes da década de 40. Hoje eles são “Pátio das Cantigas” e “Ala-Arriba”.


“Pátio das Cantigas”








Sinopse:
Os sonhos, os dissabores, as alegrias e tristezas, paixões e ciúmes de uma pequena comunidade de um pátio na cidade de Lisboa.
Alfredo, bom rapaz e irmão do desvairado Carlos Bonito (António Vilar), namora com a frívola Amália e é amado pela pensativa Susana (Graça Maria), sua irmã. Narciso (Vasco Santana) bêbado crónico e virtuoso de guitarra, é pai de Rufino (Francisco Ribeiro, o Ribeirinho) e sócio da leitaria. A senhora Rosa (Maria das Neves), viúva, fresca e florista é disputada por Narciso e pelo maniento Evaristo (António Silva).
Curiosidades:
Realizado por Francisco Ribeiro, irmão de António Lopes Ribeiro, em 1941.
Foi o único filme que Francisco Ribeiro realizou e no qual ele, António Silva e Vasco Santana contracenam pela primeira vez.
Estreou no cinema Eden no dia 23 de Janeiro de 1942.
Hoje, “Pátio das Cantigas” é uma referência das comédias das décadas de 30/40, e no qual podemos apreciar não só os dotes de actor de Ribeirinho como também o seu talento como encenador teatral e cinematográfico.

“Ala-Arriba”










Sinopse:
História de amor passada em terras de Póvoa de Varzim. Filme com contornos de documentário, no qual são apresentados os dramas, costumes e hábitos de uma comunidade piscatória tendo o mar com pano de fundo.

Curiosidades:
Filme de José Leitão de Barros, realizado no ano de 1941.
Este foi o primeiro filme português a conquistar um prémio no Festival de Cinema Internacional de Veneza: a Taça Volpi, em 1942.
Este é dos melhores filmes realizados por Leitão de Barros, onde apenas dois dos actores são actores de palco. O resto do elenco não era profissional. Contudo, apesar da inexperiência de muitos actores, “Ala-Arriba” valeu um prémio de orgulho nacional.

sexta-feira, março 13

Arte Popular: Feira Artesanal

Tenho um pedido de desculpas a fazer a todos por não ter colocado os devidos artigos e nas datas devidas.

Vou começar hoje com um artigo sobre feiras de artesanato tradicional português, e assim vou continuar durante algumas semanas.



Em Vila do Conde, em 2008 realizou-se a 31ª feira nacional de artesanato, quando esta feira teve inicio ninguém imaginava que iria contribuir para o lançamento de artesãos portugueses e da cultura popular. Ano após ano, a Feira Nacional de Artesanato de Vila do Conde foi-se afirmando, muito se ficando a dever à Comunicação Social, ao público que desde a primeira hora aderiu a esta "Festa" das Artes Tradicionais Portuguesas e, sobretudo, aos artesãos que, não obstante se terem multiplicado um pouco por todo o País idênticas iniciativas, sentiram em Vila do Conde um carinho e apoios que os incentivaram a continuar a arte que herdaram de pais e avós.



Nesta feira existem 110 “banquinhas” com a presença de várias regiões do país. Existe ainda sorteios de prémios diários, alguns prémios de maior importância, concurso de fotografia, alguma animação como ranchos folclóricos e ainda jornadas gastronómicas. Esta feira vai ter a sua 32ª edição ainda este ano, 2009, de dia 25 de Julho a dia 09 de Agosto. Aqui vos deixo uma sugestão para passarem um bom ou bons dias, aproveitando para conhecer mais e melhor o que de tão bom tem o nosso país Portugal.

Pintura: O Retratista

Antes de mais espero que tenham apreciado a reflexão que apresentei a semana passada, é claro, se tiverem algo a acrescentar à ideia, por favor deixem algum comentário ou sugestão.

No artigo de hoje apresentar-vos-ei uma biografia do pintor Luís Pinto Coelho, desta forma farei uma pausa entre a reflexão do artigo anterior e a próxima, para assim não apresentar as reflexões todas de seguida.

Luís Braamcamp Freire Pinto Coelho nasceu em 1942 em Lisboa e veio a falecer em Novembro de 2001, vítima de cancro. Luís Pinto Coelho destacou-se como pintor na área do retrato.

Com 17 anos entrou no curso de pintura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e dois anos depois mudou-se para Madrid, onde trabalhou no ateliê do seu mestre: o pintor espanhol Luís Garcia Ochoa.
Como já foi referido, o pintor destacou-se como retratista tendo feito retratos de várias personalidades, como por exemplo, do Rei D. Juan Carlos I de Espanha, e de outros membros da aristocracia portuguesa, da Amália Rodrigues, do General António Ramalho Eanes, do Belmiro de Azevedo e até do premiado José Saramago. Para além dos retratos, a obra do pintor também abrange temas como a tauromaquia, cenas populares, fantasias e temas relacionados com personagens históricas.

Luís Pinto Coelho também se dedicou a outras áreas plásticas, além da pintura, como a cerâmica, a escultura, as artes gráficas, a pintura mural, a cenografia, a decoração, a fotografia, a tapeçaria, o design e a gravura. Vários dos trabalhos plásticos do pintor estão presentes em vários locais como bancos e outras instituições.


O pintor participou em imensas exposições colectivas e realizou 54 exposições individuais, como por exemplo uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e as obras de Luís Pinto Coelho estão por todo o mundo tanto em colecções particulares com em vários museus, principal em Portugal e em Espanha.


Foi em 1980 que o pintor viu o seu trabalho reconhecido pelo Governo Português, quando foi distinguido com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique.

segunda-feira, março 9

Literatura: Palavras cantadas e soltas no ar

É com este artigo e com esta frase que darei início a um novo tema abrangente do meu plano de artigos: a literatura do fado. Para o típico e frequente ouvinte da música de Lisboa, o nosso fado, ou mesmo para os mais afastados desta forma de ouvir os nossos lamentos e harpejos, o elemento central desta música parece ser a emocionada e fascinante voz que entoa as notas mais belas da existência do ser humano. Sem dúvida que este aspecto é comum a qualquer estilo musical e a própria música alimenta-se dessa sua característica um pouco redutora... Na verdade, por trás de quem interpreta uma canção, existem os seus verdadeiros criadores, mentes fecundas que não surgem nos espectáculos mas que o originaram por via da sua imaginação: há os compositores que criam a musicalidade e os escritores, poetas geralmente, que juntam as palavras que melhor calharem em cada momento da melodia que foi sugerida à voz do fadista. E é este desmembramento do nosso fado que eu considero essencial num espaço de debate de ideias e de cultura como este: importa conhecer as vozes, mas também todos os artistas que produzem, dando o seu contributo com alguma arte, a obra-prima que termina cantada junto de um público muito merecido e acolhedor. E aproveito com muita alegria o espantoso artigo do meu colega da música, que atentou à importância da guitarra portuguesa e dos compositores para a música nacional, para iniciar o nosso estudo sobre os poetas que escreveram para as maiores vozes de Portugal, incluindo os formidáveis fadistas, que em mais nenhum ponto do mundo há, e se os houver encontraremos neles uma raíz, ou uma costela, deste nosso canto à beira mar plantado.

O Fado, enquanto conjunto de canções marcantes que se vêem acompanhadas de uma infinidade de sensações ímpares, é cantado, e ao contrário do que disse uma grande e boa amiga nossa que se pronunciou por altura da nossa tertúlia na escola sobre o fado, o fado não é apenas música ("O fado é... música", disse ela): o que o fado é vai desde as guitarras, à música, à voz, mas é muito aquilo que a voz nos canta - o Fado é, igualmente e com muita importância, as palavras que o poeta do fado escreveu para esse mesmo efeito.

Este estilo de música, durante o século XX, e mais nesse século do que no que o antecedeu e do que neste em que vivemos, consistiu num aspecto central da cultura no nosso país: a arte portuguesa alimentava-se do sentimento do fado e das suas lágrimas... E a isto devemos aliar aquilo que mais me deixa entristecido, como decerto o reconhecem: apesar de todo o mérito da literatura portuguesa e da sua qualidade inegável e aceite mesmo no estrangeiro, e digo mesmo que não há dificuldade em vender Fernando Pessoa no lado oposto do mundo, o público português nunca assistiu aos seus escritores conforme estes o mereceram. Embora a literatura seja, e tenha sempre sido, a arte maior em Portugal, o comum dos portugueses não a vive a não a aprecia consoante seria pretendido com a maior justeza. Esta característica peculiar lembrou aos poetas portugueses do século XX que deveriam fazer mais do que simplesmente escrever os seus lindos poemas em folhas que mais tarde se veriam, ou não, impressas. Os poetas começaram a olhar o Fado, através do canto, como a forma perfeita de fazer os seus poemas alcançaram um público muito mais alargado, que, com a ajuda do sentimentalismo brilhante do Fado, se mostraria bem mais vulnerável e receptivo à poesia. E foi pelo Fado que muitos dos mais influentes poetas portugueses do século passado ganharam popularidade e alguns a mantêm nos dias correntes.

Regra geral, os escritores, principalmente os de cidade, ganham hábitos muito fortes de convívio, nomeadamente nocturno, e em grupo ou sós costumam sair e beber, viver a atmosfera da noite que difere gravemente da do dia em que todas as pessoas vivem, e a noite passa a ser um outro dia, mais restrito e selectivo. Em Lisboa, a grande cidade portuguesa, os escritores e poetas frequentavam muito regularmente as casas de Fado dos bairros mais tradicionais, como Alfama, Mouraria ou Bairro Alto, e nestes estabelecimentos contactavam directamente com outros artistas, como compositores e fadistas. Tornou-se, pelo passar do tempo, cada vez mais usual criar um ciclo entre todos estes artistas, de inspirações recíprocas que culminariam numa grande revolução cultural em Portugal, com as devidas limitações impostas pelo Regime do Estado Novo: os criadores inspiravam-se com as vozes dos fadistas e compunham e escreviam cada vez melhor para essas mesmas vozes; os fadistas, por sua vez, com melhores melodias e melhores poemas, podiam chegar ainda mais longe e cantar ainda melhor, uma vez que os criadores começavam a conhecer os pontos fortes do canto da pessoa em questão. E, desta forma, os artistas que o Fado envolve faziam melhorar-se uns aos outros, persistentemente, sempre mais e mais. Sem surpresa afirmo que todo este processo atingiu o auge com a melhor Voz que o mundo algum dia pôde fazer nascer: Amália Rodrigues.

Os melhores compositores e poetas do nosso país, e mesmo de outras nações, dedicaram trabalhos a esta diva maior que tudo o resto que existiu entre nós. E é os poetas que Amália cantou que pretendo tratar nos próximos artigos e no que ainda sobrar deste. Porque os poetas que encontramos na obra da grande Fadista e Cantora podem dividir-se em três grupos: os poetas tradicionais, os grandes poetas e os poetas do Fado.

O primeiro grupo diz respeito aos primeiros poetas que trabalharam com Amália, e os que geralmente trabalham junto dos fadistas; são geralmente poetas nascidos nos bairros antigos de Lisboa e muito junto, de alguma forma, com a atmosfera que é vivida nestes bairros de cariz histórico. Estes poetas não apresentam traços de genialidade muito evidentes, mas mantêm-se quase sempre incrivelmente fiéis ao sistema rimático defendido no Fado, ajudando, como nenhum outro grupo de poetas, à descoberta da verdadeira linguagem do Fado. Neste grupo encontramos nomes como Amadeu do Vale, José Galhardo, Linhares Barbosa e Alberto Janes.

O segundo grupo, o dos grandes poetas, é especialmente importante para a obra mais brilhante de Amália Rodrigues. A Cantora portuguesa ultrapassou-se a si mesma quando surpreendeu o mundo inteiro a cantar Luís de Camões e os seus mais perfeitos, e alguns até mesmo pouco conhecidos do público alargado, sonetos do maior poeta da língua portuguesa. Nos dias de hoje, por exemplo, é bastante comum a um fadista, como Camané o fez já, aproveitar poemas de Fernando Pessoa e cantá-los com a emoção toda do Fado. Na carreira de Amália, encontramos outros poetas já falecidos que a Fadista procurou fazer relembrar junto do grande público que reuniu, como o rei D. Dinis, famoso trovador e importantíssima figura na cultura portuguesa do seu tempo.

O terceiro grupo, na minha opinião o mais importante dos três na perspectiva da carreira e do sucesso de Amália Rodrigues, é sobre o qual me debruçarei nos próximos três artigos. Estes foram os grandes poetas do século XX que, conhecendo Amália, escreveram propositadamente para a sua voz. Neste grupo invulgarmente genial encontramos os influentes nomes de José Régio, já mencionado em relação ao Modernismo, no qual foi uma personagem incontornável, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Homem de Melo e Manuel Alegre (que ainda hoje é influente e não só pelo que escreve). Deixo de seguida, e para terminar, o excelente poema Gaivota, de Alexandre O'Neill, que é, na minha sincera e ponderada opinião crítica, o melhor de todos os poemas do Fado. Leiam e escutem, e aprendem a ser felizes pelo ouvido...

"Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração."