segunda-feira, março 9

Literatura: Palavras cantadas e soltas no ar

É com este artigo e com esta frase que darei início a um novo tema abrangente do meu plano de artigos: a literatura do fado. Para o típico e frequente ouvinte da música de Lisboa, o nosso fado, ou mesmo para os mais afastados desta forma de ouvir os nossos lamentos e harpejos, o elemento central desta música parece ser a emocionada e fascinante voz que entoa as notas mais belas da existência do ser humano. Sem dúvida que este aspecto é comum a qualquer estilo musical e a própria música alimenta-se dessa sua característica um pouco redutora... Na verdade, por trás de quem interpreta uma canção, existem os seus verdadeiros criadores, mentes fecundas que não surgem nos espectáculos mas que o originaram por via da sua imaginação: há os compositores que criam a musicalidade e os escritores, poetas geralmente, que juntam as palavras que melhor calharem em cada momento da melodia que foi sugerida à voz do fadista. E é este desmembramento do nosso fado que eu considero essencial num espaço de debate de ideias e de cultura como este: importa conhecer as vozes, mas também todos os artistas que produzem, dando o seu contributo com alguma arte, a obra-prima que termina cantada junto de um público muito merecido e acolhedor. E aproveito com muita alegria o espantoso artigo do meu colega da música, que atentou à importância da guitarra portuguesa e dos compositores para a música nacional, para iniciar o nosso estudo sobre os poetas que escreveram para as maiores vozes de Portugal, incluindo os formidáveis fadistas, que em mais nenhum ponto do mundo há, e se os houver encontraremos neles uma raíz, ou uma costela, deste nosso canto à beira mar plantado.

O Fado, enquanto conjunto de canções marcantes que se vêem acompanhadas de uma infinidade de sensações ímpares, é cantado, e ao contrário do que disse uma grande e boa amiga nossa que se pronunciou por altura da nossa tertúlia na escola sobre o fado, o fado não é apenas música ("O fado é... música", disse ela): o que o fado é vai desde as guitarras, à música, à voz, mas é muito aquilo que a voz nos canta - o Fado é, igualmente e com muita importância, as palavras que o poeta do fado escreveu para esse mesmo efeito.

Este estilo de música, durante o século XX, e mais nesse século do que no que o antecedeu e do que neste em que vivemos, consistiu num aspecto central da cultura no nosso país: a arte portuguesa alimentava-se do sentimento do fado e das suas lágrimas... E a isto devemos aliar aquilo que mais me deixa entristecido, como decerto o reconhecem: apesar de todo o mérito da literatura portuguesa e da sua qualidade inegável e aceite mesmo no estrangeiro, e digo mesmo que não há dificuldade em vender Fernando Pessoa no lado oposto do mundo, o público português nunca assistiu aos seus escritores conforme estes o mereceram. Embora a literatura seja, e tenha sempre sido, a arte maior em Portugal, o comum dos portugueses não a vive a não a aprecia consoante seria pretendido com a maior justeza. Esta característica peculiar lembrou aos poetas portugueses do século XX que deveriam fazer mais do que simplesmente escrever os seus lindos poemas em folhas que mais tarde se veriam, ou não, impressas. Os poetas começaram a olhar o Fado, através do canto, como a forma perfeita de fazer os seus poemas alcançaram um público muito mais alargado, que, com a ajuda do sentimentalismo brilhante do Fado, se mostraria bem mais vulnerável e receptivo à poesia. E foi pelo Fado que muitos dos mais influentes poetas portugueses do século passado ganharam popularidade e alguns a mantêm nos dias correntes.

Regra geral, os escritores, principalmente os de cidade, ganham hábitos muito fortes de convívio, nomeadamente nocturno, e em grupo ou sós costumam sair e beber, viver a atmosfera da noite que difere gravemente da do dia em que todas as pessoas vivem, e a noite passa a ser um outro dia, mais restrito e selectivo. Em Lisboa, a grande cidade portuguesa, os escritores e poetas frequentavam muito regularmente as casas de Fado dos bairros mais tradicionais, como Alfama, Mouraria ou Bairro Alto, e nestes estabelecimentos contactavam directamente com outros artistas, como compositores e fadistas. Tornou-se, pelo passar do tempo, cada vez mais usual criar um ciclo entre todos estes artistas, de inspirações recíprocas que culminariam numa grande revolução cultural em Portugal, com as devidas limitações impostas pelo Regime do Estado Novo: os criadores inspiravam-se com as vozes dos fadistas e compunham e escreviam cada vez melhor para essas mesmas vozes; os fadistas, por sua vez, com melhores melodias e melhores poemas, podiam chegar ainda mais longe e cantar ainda melhor, uma vez que os criadores começavam a conhecer os pontos fortes do canto da pessoa em questão. E, desta forma, os artistas que o Fado envolve faziam melhorar-se uns aos outros, persistentemente, sempre mais e mais. Sem surpresa afirmo que todo este processo atingiu o auge com a melhor Voz que o mundo algum dia pôde fazer nascer: Amália Rodrigues.

Os melhores compositores e poetas do nosso país, e mesmo de outras nações, dedicaram trabalhos a esta diva maior que tudo o resto que existiu entre nós. E é os poetas que Amália cantou que pretendo tratar nos próximos artigos e no que ainda sobrar deste. Porque os poetas que encontramos na obra da grande Fadista e Cantora podem dividir-se em três grupos: os poetas tradicionais, os grandes poetas e os poetas do Fado.

O primeiro grupo diz respeito aos primeiros poetas que trabalharam com Amália, e os que geralmente trabalham junto dos fadistas; são geralmente poetas nascidos nos bairros antigos de Lisboa e muito junto, de alguma forma, com a atmosfera que é vivida nestes bairros de cariz histórico. Estes poetas não apresentam traços de genialidade muito evidentes, mas mantêm-se quase sempre incrivelmente fiéis ao sistema rimático defendido no Fado, ajudando, como nenhum outro grupo de poetas, à descoberta da verdadeira linguagem do Fado. Neste grupo encontramos nomes como Amadeu do Vale, José Galhardo, Linhares Barbosa e Alberto Janes.

O segundo grupo, o dos grandes poetas, é especialmente importante para a obra mais brilhante de Amália Rodrigues. A Cantora portuguesa ultrapassou-se a si mesma quando surpreendeu o mundo inteiro a cantar Luís de Camões e os seus mais perfeitos, e alguns até mesmo pouco conhecidos do público alargado, sonetos do maior poeta da língua portuguesa. Nos dias de hoje, por exemplo, é bastante comum a um fadista, como Camané o fez já, aproveitar poemas de Fernando Pessoa e cantá-los com a emoção toda do Fado. Na carreira de Amália, encontramos outros poetas já falecidos que a Fadista procurou fazer relembrar junto do grande público que reuniu, como o rei D. Dinis, famoso trovador e importantíssima figura na cultura portuguesa do seu tempo.

O terceiro grupo, na minha opinião o mais importante dos três na perspectiva da carreira e do sucesso de Amália Rodrigues, é sobre o qual me debruçarei nos próximos três artigos. Estes foram os grandes poetas do século XX que, conhecendo Amália, escreveram propositadamente para a sua voz. Neste grupo invulgarmente genial encontramos os influentes nomes de José Régio, já mencionado em relação ao Modernismo, no qual foi uma personagem incontornável, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Homem de Melo e Manuel Alegre (que ainda hoje é influente e não só pelo que escreve). Deixo de seguida, e para terminar, o excelente poema Gaivota, de Alexandre O'Neill, que é, na minha sincera e ponderada opinião crítica, o melhor de todos os poemas do Fado. Leiam e escutem, e aprendem a ser felizes pelo ouvido...

"Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração."

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