Não sei já pedir que no mundo haja saúde e que o bem exista mesmo no ar que se faz vento sobre nós; não sei já pedir que essa saúde nos cale os dissabores que são feitos da fuga comprometida de um sorriso. Mas peço que esse sorriso, contra qualquer tendência que no seu sentido aponte menos, surja com a frequência de um minuto, de uma hora, e que em todos eles eu possa olhar e observá-lo não apenas na face daqueles que assumidamente adoro e a quem dedico a minha vida, mas de igual maneira sob os olhos dos indivíduos que contra mim possam apregoar, que sei existirem talvez mais do que os anteriores... É a minha dor de certas horas e o meu orgulho de vida inteira: gostar do que há, por haver; sonhar ainda assim, pelo que hei-de amar por existir num dia que esteja para chegar. E se questionarem o propósito de vos pedir tamanha felicidade que vos faça sorrir, no âmbito de um artigo que sou quase forçado a escrever, não me julguem também o génio de desejar o bem simplesmente por estratégia de prosador, pois este desejo é de mim, vem de mim, vem deste coração e não das mãos que o escrevem. O artigo vem a seguir.
Esta semana trago até vós outro grande poeta da canção nacional, e homem é ele, mais do que pelo seu nome que o diz já: Pedro Homem de Melo. Com efeito, há daqueles homens que, pela família e seu nome, nasceram para ser homens de "h" grande. E este nosso bom poeta portuense acabaria vivendo tantos anos quantos a grande diva que lhe deu voz aos poemas: Amália Rodrigues, que faleceu meses antes de completar as oito décadas de existência. Tem interesse e chama o fascínio quando somos levados a reflectir sobre a memória dos grandes artistas. Havia vida antes deles, pessoas nasciam, viviam e esperavam a morte que lhes viesse quebrar os projectos que eram mantidos à mercê da fortuna dos mais afortunados ou do azar de muitos outros. E nessa vida podia haver alguma felicidade, ou pouca, ou toda a que se viria a registar a posteriori. Mas os artistas nascem e, quando a morte lhes leva, e a nós, a sua capacidade de criar arte ou de transmiti-la, não são votados ao esquecimento seguro como o são todas as outras pessoas que não dedicaram os seus anos a uma obra ou a uma causa de mérito próprio. E após eles, algo na vida de todos foi deixado por essa pessoa, entrando em nós por algo acessório ao movimento físico. Os artistas verdadeiros passam pela vida para deixar o que não lhes irá permitir a morte inteira, mas apenas do seu corpo, que se sumirá enquanto veremos a memória perdurar! Talvez haja artistas permanentemente deprimidos, e mesmo eu não consigo descobrir nisso uma acertada escolha ou compromisso... contudo, restará a todos saber que vida é preferível se a outra se assume como alternativa à qual nos podemos remeter todos os dias.
Não sei também, e hoje pareço saber muito pouco ou então entendo-o simplesmente hoje, se Pedro Homem de Melo já saberia da imortalidade de que o seu nome goza nos dias que correm, ou se para a alcançar foi que confiou à maravilhosa voz de Amália a sua arte em verso. E dos poemas que a diva do Fado cantou cujo poema proveio do pensamento e das veias deste poeta, refiro Havemos de ir a Viana, Cuidei que Tinhas Morrido e o sempre recordado Povo Que Lavas no Rio, que para mim é mais do que música e que o sabem os que me conhecem.
"Povo que lavas no rio,
que talhas com o teu machado
as tábuas de meu caixão,
pode haver quem te defenda,
quem compre o teu chão sagrado,
mas a tua vida não.
Fui ter à mesa redonda,
beber em malga que esconda
o beijo de mão em mão;
era o vinho que me deste
água pura, fruto agreste,
mas a tua vida não.
Aromas de urze e de lama,
dormi com eles na cama,
tive a mesma condição;
povo, povo, eu te pertenço,
deste-me alturas de incenso,
mas a tua vida não."
Neste poema, Pedro Homem de Melo canta a um dos seus amores: o povo português, as suas tradições e especificidades. O amor ao país fazia dele um apaixonado pelo património folclórico que nos pertence e que enriquece a cultura das diferentes regiões portuguesas. Dedicou muito da sua obra à concepção de poemas para canções populares. E o povo acarinhava-o, sabia encontrar nele quem o amasse como um igual. De resto, e por trás das suas variadas dedicações que pudesse reservar, era um licenciado em direito pela faculdade de Coimbra, onde chegou a contactar com o movimento da revista Presença, do qual fazia parte, entre outros, o já muito mencionado José Régio. E uma vez que não vos dei ainda o conhecimento da altura do nascimento deste poeta de hoje, estas suas relações são o único testemunho que têm para induzir algum dado. Mas não o precisam fazer, pois sois o povo e sou, também eu, um amante de tudo o que sois. Pedro Homem de Melo nasceu no Norte do país em Setembro de 1904, vindo a deixar-nos em 1984, junto ao início da Primavera.
Sou pouco afecto a boatos ou especulações de qualquer ordem. Porém, ocorre-me dizer que, segundo alguns dados que me foram dados a interpretar, Homem de Melo era, muito provavelmente, apoiante do regime de António de Oliveira Salazar. Há uns poucos de dias murmurei, como um desabafo que se faz na regularidade dos costumes, na presença do meu melhor amigo, que pareciam ser todos os grandes escritores portugueses do século XX ligados à ideologia comunista. Perante esta realidade terei de me resguardar mais no que toca a pensamentos generalistas. Muitos de vós serão do conhecimento das minhas convicções políticas e da amargura que me corrompe ao nome de Salazar e todo este ódio que, pela sua envergadura, chega a ser crime: ainda assim parecendo, e por isso, surpreendi-me a mim mesmo por não odiar, de um momento para o outro, quem foi este poeta. Na verdade, compreendo hoje, mais do que há uns tempos, que uma pessoa não se define somente pela ideologia que acredita ser viável para o desenvolvimento promissor de uma sociedade e de uma economia. Conhecendo a dedicação do regime Salazarista à manutenção de tantas tradições regionais, ganhei a noção de que coexistem sempre duas, ou mais, perspectivas do mesmo assunto. Neste caso em particular, o povo era defendido pelas ideias marxistas por estabelecerem o poder de decisão nas mãos dos trabalhadores, e era também defendido pelo Salazarismo na medida em que este pretendia reunir esforços para o apoio da vida rural e das comunidades menos ligadas à urbanização. Continuo a desgostar bastante de gente que queira trazer de volta os maus tempos que mataram pessoas do meu país e continuo a sonhar com a Revolução de Abril que não matou ninguém, mas não retiro o mérito ao Salazarismo pela sua política de defesa do património folclórico e das tradições que só enriquecem este nosso canto da Europa.
E assim finalizo este artigo, talvez mais de temas subjacentes do que de biografia. E deixo a promessa de vos escrever sobre Ary dos Santos, na próxima semana, e ainda o pedido reformulado: sejam felizes!
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