segunda-feira, março 16

Literatura: Por trás da madeira oca do cachimbo

Muitos haveriam de dizer, se ao mérito da grande mestria de David Mourão-Ferreira fosse mais equivalente o nascimento de um reconhecimento mais profundo sobre a sua obra, que a genialidade, ou parte dela, provirá da conservação de um vício, tomado como a paz menos saudável de um espírito que se quer agradado. O fumo do cachimbo era aquele ar de um odor forte que este grande poeta do século XX apreciava que saísse de dentro de si, por sopros lentos e aguardados, esperando ver, após cada baforada apetecida, que, do mundo aparte dos Deuses, descesse ao seu pensamento uma nova criação, novos versos de magia e talento. O cachimbo, que eu sempre uni à imaginação de grandes artistas, como o hábito de beber absinto ou de procurar a solidão, era o amigo inseparável deste meu grande mestre no qual muitas vezes penso, e o qual vejo como exemplo de sobriedade inigualável a seguir com um certo orgulho. Deixava-se retratar propositadamente com o seu cachimbo, e não pensem de mim qualquer materialismo de extremos por afirmar o que seguirei a afirmar acerca dos objectos, mas que em verdade eles são, tantas e tantas vezes, melhores conselheiros que os humanos, por nos aconselharem num ambiente silencioso e de paz.

Assim como José Régio, que abordei há duas semanas, David Mourão-Ferreira, nascido em 1927, cursou Filologia Românica, embora em Lisboa. Acabaria por leccionar nessa mesma faculdade de Letras, até retirar-se e procurar viver da sua própria escrita, tanto no campo criativo, como através da publicação em periódicos. No campo jornalístico trabalhou para jornais tão diversos como A Seara Nova, Diário Popular, O Dia e A Capital. Revelou sempre, junto dos seus colegas de trabalho e mesmo de estudo, uma invulgar capacidade criativa e maturidade literária que prometia sempre surpreender o próximo. Notabilizava-se e impressionava através da crítica literária, além de que soube sempre como fazer chegar ao grande público as suas mensagens.

Este aspecto vem direccionado do último artigo que escrevi para este blogue, na semana que passou: uma infinidade de poetas do século XX buscou no Fado e na sua popularidade a oportunidade valorosa de alcançar o reconhecimento da população. Este foi um deles. Mas David Mourão-Ferreira, não que se tratasse de um manipulador ou daquilo a que vulgarmente chamamos de interesseiro, mas soube tirar partido da canção para mais facilmente intervir no pensamento comum. Isto é, todos conhecemos a capacidade única das artes em geral, e da literatura em particular, para imortalizar uma mensagem ou um pensamento, e na conjuntura cultural do Portugal de meados do século passado, quando a censura operava com tanta regularidade e limitando tanto os movimentos e ideias dos criativos, este poeta entendeu que usar o Fado, e muito especialmente Amália Rodrigues (sempre adorada pelos dirigentes políticos da ditadura), seria uma forma inteligente de, possivelmente, conseguir ir mais além na crítica, se esperto e perspicaz fosse ao fazê-lo.

E assim conseguiu: para Amália Rodrigues escreveu o poema Abandono, também conhecido hoje como Fado Peniche, em que esboça, com grande clareza, uma crítica à política salazarista de prisões e perseguições com base na opinião pessoal acerca dos caminhos que o País devia seguir.

“Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar:
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar!”

Assim se inicia o fabuloso poema. A grande crítica tem lugar nos dois primeiros versos, onde aparentemente o Poeta, na voz da Cantora, recorda quem, por seu pensamento, terminou atrás das grades, apenas ouvindo os sons solitários do vento e do mar. Esta descrição pouco precisa, mas suficiente, do espaço (do longe em que encerraram o preso) faz ainda hoje pensar que este se trata do Forte de Peniche, uma das grandes prisões do Estado Novo. Nesta primeira das três estrofes que constituem o bonito poema, a Fadista chora a tristeza de saber o seu amor desgraçado, numa agonia provavelmente maior do que a sua, que o viu partir. É a dor de uma amante que, apesar do afogo caído pelo suor de cada lágrima, não pode fazer chegar mais o seu lamento aos lábios de quem ama. E pelo resto do poema, através de uma comparação, nem sempre perceptível, entre a dor de quem partiu e de quem ficou, há-de concluir-se que quem ficou conhece umas tormentas mais graves, por um único pormenor que é lançado na primeira estrofe mas que só se entende com a última. E o poema continua assim:

“Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia!”

O significado da palavra noite está relacionado com a bruma em que esta acontece sempre que um dia acaba, e que deve ser relacionada com o tempo da solidão, da tristeza, enquanto a luz, o Sol, o dia, nos remetem para a euforia, alegria e energia. E daí que se escreva e se cante que não mais tornou a ser dia após a partida do seu amado para a prisão que não mereceu. Onde estavam antes os beijos mais ternos e quentes, está agora o vazio e o silêncio, como nos será apresentado na derradeira estrofe do poema:

“Ai dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar!
Ouço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar…
Ao menos ouves o vento,
Ao menos ouves o mar!”

Temos aqui a grande conclusão do poema, como aparecendo ele uma breve e concisa reflexão sobre a solidão forçada dos dois amantes e que promete conduzir ambos a uma loucura certa: quem ficou sofre mais por vê-lo partir, pois ouve o silêncio onde antes via amor; quem parte, tem ao seu lado o vento e o mar… Ouve, por assim dizer, as ondas e as rajadas que podem trazer sempre algo de novo, ou que simplesmente se tratam de algo novo a cada instante! Mas quem ficou, no tremendo abandono que dá o título ao poema, deixou de ouvir e de manter-se na saúde que poderia criar novas esperanças. E tudo isto cresce de beleza a cada novo verso que se apresenta, não havendo nenhum verso que não tenha sido estudado com precisão antes de ser escrito: todo o verso adiciona uma informação e é suficiente para depreender muitos outros dados através de acção simbólica ou de pura dedução que nós somos capazes de cumprir.

Resta debater o que sucedeu de tão impróprio, segundo o normal rigor que regia a censura portuguesa, para que este poema tenha sido cantado, em Portugal e no mundo, durante os tempos da ditadura. A comissão de censura, evidentemente, chamou Amália para prestar declarações e justificar-se prontamente. A Cantora defendeu-se com a beleza sublime do poema e da equivalente melodia de Alain Oulman, dizendo que se tratava de um vulgar poema de amor, sem mensagem subliminar, sobre dois amantes que viram os seus Destinos interceptados por uma força mais forte que as suas sensibilidades. A emoção da arte convenceu a censura, e fará algum sentido que assim tenha ocorrido: é este, sem dúvida nenhuma, um dos poemas mais formidáveis que Amália cantou, com uma música tão ou mais brilhante do que as próprias palavras que a seguem.

E este poema e o jogo duplo de Amália Rodrigues em relação a esta canção são hoje a demonstração de que ela, contrariamente ao que muito se argumenta, não era afecta ao fascismo e que simplesmente o mostrava ser por ela se tratar de um mecanismo que o Regime utilizava para impressionar além-fronteiras; e essa projecção importava a Amália Rodrigues, e é compreensível a todos nós. Aliás, para quem viu o filme Amália ou tenciona vê-lo ou revê-lo em breve, note no seguinte pormenor: no momento em que acusam Amália em pleno palco do Coliseu dos Recreios de apoiar o Estado Novo, ela inicia a cantar Abandono, como dizendo que todas essas acusações carecem de fundo verdadeiro, e que ela, como qualquer bom português, ansiava por uma mudança estrutural na política e sociedade portuguesas. Tal como David Mourão-Ferreira, que esteve não só por trás da madeira oca do cachimbo, mas também por trás desta mensagem de esperança e intervenção num Portugal fechado, só em aparência, a diferentes modos de pensar.

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