segunda-feira, março 2

Literatura: As mãos de Deus na sociedade do Diabo

Lembro, para início desta semana que se avizinha e promete trazer no regaço novidades e algumas alegrias, que iniciei, com o artigo anterior, o estudo da segunda geração de modernistas portugueses. Esta geração, que deu à corrente modernista um novo fôlego e impulso após a morte de alguns vultos que fundamentavam a ideologia, como Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso. Falo da revista Presença, tal qual sendo uma segunda revista Orfeu na História literária deste nosso bom país. Assim, é justo afirmar dois pontos: primeiro, os fundadores desta revista tornaram-se os efectivos membros e responsáveis por este segundo surto modernista (Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca e José Régio); segundo, refiro que a segunda etapa do Modernismo lusitano compreendeu essencialmente uma preocupação literária pelo aprofundar de algumas místicas iniciadas pela primeira geração, sendo que os artistas plásticos modernistas não se evidenciaram com vantagem nesta segunda geração. E se falamos em diferentes gerações, implica que vários anos tenham passado, como um interregno que tivesse trazido diferentes inspirações e projectos inovadores. A primeira geração de modernistas correspondeu ao verdadeiro início do século, nos seus quinze anos iniciais, principalmente. A segunda geração corresponde aos artistas que se uniram, num projecto uno e concreto, a partir dos anos 20 até ao avançar do movimento neo-realista, iniciado na década de 30.

Entre as personalidades que demonstram a genialidade desta nova geração, apenas José Régio me faria erguer do meu assento numa interminável ovação, e com efeito tornou-se o grande impulsionador de todos os poetas do seu tempo, e o grande ideólogo da manutenção dos cânones modernistas na literatura. As influências que eram trazidas do estrangeiro pelos intelectuais, e mesmo aquelas que eram sugeridas pela conjuntura interna de Portugal, ditaram as opções que divergiram o ideal da primeira geração do Modernismo e esta que estudo hoje. A Guerra Mundial, antes dos anos 20, revelou a brutalidade das acções humanas e as suas dramáticas consequências, como um conflito num dado sítio possa fazer sofrer os lugares mais remotos. José Régio, na sua poesia milagrosa, de tão excepcional, assimila esta desconfiança na espécie humana, os dramas do indivíduo que questiona o bom funcionamento e o conceito de sociedade que o alberga. As suas convicções socialistas, a par das de muitos e tantos outros escritores portugueses, permitem percepcionar com certa facilidade este espírito carente de mudança e de ajuda, que procura as soluções para a sua pessoa e para a humanidade que parece condenada à destruição de si mesma.

"Poeta sou! cumpro o meu Fado, estranho

Como o dum santo ou um louco

Só posso dar de mais ou muito pouco,

Que é tudo quanto tenho."

Estes quatro versos, escritos pela mão mágica de José Régio, demonstram, melhor do que as minhas especulações podem fazer-vos entender, as dúvidas que baseiam a sua personalidade: um sujeito que se isola, olhando os outros em sociedade como um objecto onde apenas pode depositar os extremos da sua alma - o tudo ou o nada. Não existia meio termo na dedicação deste homem, parecia ele amar demais e querer demais, sempre demais para os outros o poderem satisfazer; ou então queria pouco, tão pouco, e tão pouco oferecia em troca, que o mundo o deixava de ver, de observar, e o esquecia, deixando-o abandonado nos seus sonhos perdidos.

O parto do poeta, cujo verdadeiro nome era José Maria dos Reis Pereira, deu-se no primeiro ano do século XX, tornando-o o primeiro grande poeta verdadeiramente contemporâneo. Vila do Conde foi a terra que o viu nascer, além a norte mesmo do Douro, em território tão frio e tão chuvoso se compararmos com a cidade linda que o viu sofrer e passar a maioria da sua vida: Portalegre. Em Vila do Conde cresceu até completar o quinto ano do liceu, e até essa data tinha já escrito alguns poemas que se viram publicados em jornais locais. Na universidade cursou Filologia Românica, e lá conheceu os seus futuros colegas da Presença. Esta revista viria a ser publicada em edições sem frequência fixa e sem modelo comum: tratava-se de uma reunião de pensamentos, dissertações e obra literária dos seus escritores, sendo impressa cada vez que se encontrava pronta para o efeito. A tese da sua licenciatura anunciava já a sua extrema vocação para a literatura: o século havia-se iniciado havia poucos anos, e a tal tese centrava-se nas tendências e correntes literárias que se manifestaram desde o fim do século XIX, abordando já nomes pouco conhecidos na altura, como Mário de Sá-Carneiro ou Fernando Pessoa. Em Portalegre, onde viveu a sua vida numa estalagem da qual fez casa após a adquirir em completo, leccionou durante mais de trinta anos.

Mas é comum dizer que o isolamento deste poeta terminava nas horas em que ensinava os seus alunos. Findo esse período do dia, encontrava-se só, vivendo sozinho, percorrendo por vezes os campos em redor de Portalegre no seu burro. Era um homem da solidão, e nela sabia como encontrar um certo encanto e uma beleza acima da que achava existir na vida social. Uma das suas outras paixões era a colecção imensa de obras de arte sacra que reuniu na sua casa branca de Portalegre, e que hoje corresponde a uma casa-museu de extremo interesse - que eu mesmo tive já o grande prazer de visitar num dia soalheiro e memorável.

Grande parte da sua obra centra-se no binómio Deus/Diabo, analogia para Indivíduo/ Sociedade, como o demonstra o seu mais significativo poema, denominado Cântico Negro, do qual se segue um aclamado e brilhante excerto:

"«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali... (...)

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!"

E aqui termino a abordagem longa que fiz do Modernismo, e ainda nos próximos meses verão neste espaço de literatura o tratamento da literatura do fado. E não por acaso que tenha escolhido este poema de José Régio para dar termo ao estudo do Modernismo. Afinal, positivamente, quais versos algum dia escritos hão-de conseguir demonstrar tão mais fielmente o propósito e a mudança que os modernistas introduziram, o seu espírito de buscar a novidade e a diferença, a sua longa procura pela negação das tradições gastas no passado, do que estes?

"Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!"

Sem comentários: