segunda-feira, dezembro 22

Literatura: O manifesto do modernismo

Como já dito por motivos anteriores, a revista Orfeu, que registou duas publicações e se dedicava à divulgação cultural, era fiel aos princípios modernistas de Arte, e consistiu no marco significativo do começo desta corrente cultural no nosso país. A razão para as escassas edições desta revista advém de causa dupla: por um lado, persistia a resistência, tal como em todas as outras artes (música e artes plásticas, sobretudo), das formas e tendências outrora em voga e que assim pareciam poder permanecer, pelo perseverante gosto que captavam da população; por outro lado, também as divergências e carácteres dos seus fundadores promoveram o fracasso da revista a longo prazo. No campo das letras, os iniciadores do rumo modernista foram Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José de Almada Negreiros. A Geração de Orfeu, nome pelo qual são conhecidos os artistas que concretizaram o projecto modernista, constituída por autores de literatura e pintura, são aclamados frequentemente como o mais genial conjunto de artistas unidos que Portugal conheceu.
Na seguinte frase usarei a palavra "parcial" e prefiro justificar desde já o seu emprego: o insucesso da revista Orfeu foi parcial porque os seus efeitos assumiram-se na sociedade pela controvérsia que lançaram e pelo questionar frequente que as elites fizeram surgir em relação aos conteúdos artísticos. Regressando ao ponto primeiro das causas do parcial insucesso do Orfeu, contei a persistência das antigas correntes literárias, como o efémero neo-romantismo. Englobando todas as pequenas correntes que satisfaziam as classes leitoras, estas igualavam-se entre si pela linguagem e formas literárias que utilizavam na construção das obras. Um dos maiores nomes das letras era Júlio Dantas, grande senhor de Lisboa e apreciado pelas classes de relevo, que reagiu de forma agreste ao impulso que a Geração de Orfeu deu na revolução artística de inícios do século. Num jornal de grande importância da capital, Dantas fez publicar o seu desagrado, criticando os "rapazes, com muita mocidade e muito bom humor", que eram os fundadores da revista modernista. Como resposta, e em cariz provocatório, um manifesto que nasceu das mãos de Almada Negreiros, consagrado escritor e pintor, denominado Manifesto Anti-Dantas, representativo dos princípios revolucionários, do qual passo a transcrever um excerto.

Basta pum basta
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Datas a cavalo é um burro impotente! Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco! O Dantas é um cigano! O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz! [...]

Almada Negreiros, o modernista da primeira geração com maior longevidade, viria a falecer em 1970 com 77 anos. É considerado um dos grandes artistas portugueses do século passado, mostrando-se sempre fiel ao seu ideário, tendo mesmo apoiado o regime do Estado Novo na sua política cultural que protegia os pintores inovadores do modernismo.

Agora que se conhece já o manifesto que fez vencer os fundamentos da nova corrente cultural, importa referir alguns dos aspectos que esta contrariou, sendo sensato um novo retrocesso na nossa cronologia. Assim, na próxima semana, aqui verão descrita a vida de Júlio Dantas. Bem hajam pela vossa atenção! (E não dêem importância indevida: vocês não são nenhum coio de indigentes, conforme hoje se escreve.)

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