segunda-feira, dezembro 8

Literatura: Olhos de Água II

Como a conceberam seria mais um salão de festas do que uma artéria, onde aquela sociedade secreta faria desfile dos seus privilégios e dos seus prazeres. E talvez a vila não tivesse o ar melancólico que ganhou, embora haja ainda uma razão histórica para que pareça de castigo aos olhos de quem precisa de a atravessar. É que em tempos recuados foi sede de concelho - lá está no largo principal o antigo edifício da Câmara, com brasão de pedra mole sobre portão chapeado -, e agora vinga-se dela a outra vila que detém o ceptro municipal, por recalcados vexames dos seus anos de submissão.

Foram os notáveis da terra, quase todos lavradores, que abriram as portas a esta derrota, ao moverem influências para que uma fábrica não viesse instalar-se dentro dos seus muros.

Julgaram as pessoas ingénuas desse tempo que o facto provinha de a fábrica ter chaminé, de a chaminé deitar fumo e de o fumo poder enfarruscar as cortinas e as filhas dos lavradores. Hoje, porém, muitos afiançam que a fábrica não nasceu ali para que os camponeses, atraídos pelas dez horas de trabalho e pelos salários mais altos, não abandonassem os campos de lavoira. Nisso sobejava-lhes a prevenção, pois os de ganga já desfrutam férias e oito horas de tarefa, enquanto os seus irmãos do campo ainda se esfalfam gloriosamente, salvo seja!, na canga do sol a sol.

A verdade é que a chaminé e o fumo caíram no vilar que ficava a uns quilómetros; e como havia que tirar proveito da electricidade ali montada, juntaram-se-lhe outras fábricas, e logo o poder económico do concelho se escapou do burgo agrário e tradicionalista para o centro industrial. Atrás disso, que parecia coisa sem importância, foram-se o título de sede concelhia, o tribunal, a secção de finanças e o posto da Guarda Republicana. Daí a neurastenia profunda em que hoje vemos debater-se uma terra que teve brasão e quis ser cidade.

Desprevenido destas questiúnculas dos homens, só o rio lhe permaneceu fiel, sem a poder abandonar; e ficou para lhe remir a chateza urbana, embora seja um rio velho e relho, esquecido dos vigores da mocidade. Mesmo assim, a gente da vila corre para as suas margens, talvez porque as estradas de água falam de aventuras pelo mundo, ou por certa curva sinuosa que o rio abre à beira do casario, como se quisesse agarrar-se às pedras do cais e ao aconchego do ancoradouro, onde repousam barcos de proas pintadas com flores estranhas, que só os poetas conhecem, e donde nascem, à noite, vozes encharcadas de plangências árabes para adormecer as estrelas.

Mesmo defronte, na outra margem, fica o corpo espalmado da Lezíria, todo cerzido por veias de água emprestadas pelo rio.

A vila mora da banda dos Montes, mas tem o coração na Lezíria. E dela lhe vêm as searas de pão e de luto, as histórias selvagens dos toiros feros e a garridice azougada dos fandangos.

E a lembrança já indecisa de certas lendas...

E é este, que aqui termina, o integral primeiro capítulo desta obra neo-realista que tem vindo a não ser completamente esquecida. Nele podemos apreciar a fluidez do autor, que se mostra capaz de abordar imensos assuntos ligando-os sempre entre si e com um objectivo descritivo debaixo de olho, do qual nunca abdica. Se a verdade que me importa lançar agora é a de ter terminado com este artigo o estudo do neo-realismo, será útil limar certas arestas quanto a este tema e esta época histórica. O neo-realismo, mais do que contra um movimento cultural anterior, reagiu contra a sociedade portuguesa da altura e, em particular, contra o regime ditatorial. Na literatura a evolução foi esta de não se conformar com o regime em vigência, contrariando o geral de artes como a pintura ou o cinema, cujos principais artistas apoiaram o Estado e contribuíram para desenhar um país perfeito de gentes submissas governadas pelas elites mais adequadas.

Na próxima semana terei entre mãos a tarefa de construir uma ponte sólida que nos ligue a um tema novo que nos ocupará muitas e boas semanas.

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